quinta-feira, 18 de dezembro de 2008

Em nome do pai, do filho e da alfabetizacão

Gosto de conversar com os colegas, para ouvir o que eles trazem das pautas, das ruas, das esquinas, da gente ordinária. Esse diálogo que reproduzo aqui foi da colega Tânia Passos e um motorista de Kombi (que não posso citar o nome porque comprometeria o cidadão). Ele trabalha levando e buscando a mão-de-obra dos hotéis, pousadas, restaurantes e bares de Muro Alto, Porto de Galinhas e outros destinos abastados do turismo da cidade de Ipojuca (que só perde para o Recife em arrecadacão de Pernambuco. São 32 milhões, por mês). Segundo Passos, ainda assim, há uma carência danada de transporte para esse pessoal, que se reveza em dias de viagens. Bom, foi mais ou menos assim a conversa:

- "O senhor é o dono dessa Kombi?"

- "Sou eu o dono sim. Por que a senhora tá perguntando isso?"

- "Nada demais não".

- "Foi, eu comprei com o dinheiro das contas que eu peguei quando deixei de trabalhar num engenho no interior".

- "E o senhor sabe ler?"

- "Sei".

- "E o que tá escrito no vidro da Kombi?", falou Tânia, apontando para o adesivo "Deus é fiel".

- "Jesus pode mudar a sua vida".

- "Não é isso não. O senhor sabe escrever o seu nome?"

- "Mais ou menos".

- "Como foi que o senhor tirou a carteira de motorista?"

- "Eu não tirei. Eu trabalho sem ela. Mas a senhora não vai botar isso aí na matéria não, né?"

Ps: antes que o leitor do blog sinta falta da cedilha e me encaminhe ao EJA - como mereceria o motorista de Ipojuca - devo dizer que ainda não aprendi esse comando no teclado em inglês. Alguém se habilita a me dar essa aula?

Garota interrompida

A pauta, por si só, já era "barra", como diria a colega Marta Telles. Era dar conta do que a polícia teria descoberto do corpo de uma bebê de aproximadamente sete meses, encontrado na próximo ao Parque Dona Lindu, no bairro de Boa Viagem. Peguei o bonde andando e tudo que eu sabia não dava para escrever sequer um telegrama. Fui apurar a história com o delegado. Pois bem, 24 horas depois do "achado", a "autoridade" ainda nem tinha encaminhado o caso para a outra "autoridade", a GPCA (Gerência de Polícia da Crianca e do Adolescente). Heim? Como assim, delegado? Franzi a testa, cobrei a responsabilidade, mas foi como pedir resposta para um roubo de uma galinha, um furto de celular, sei lá. Qualquer coisa banal. Ainda estou engasgada com isso. Ah, e nem matéria teve. Por quê? Porque não tinha "nada de novo", avaliou quem me passou a pauta. 

O Ministério da Saúde adverte: Saci Pererê não é bom menino

Sempre soube, na mitologia brasileira, que o Saci Pererê é um menino. Um menino inventado - e que se criou - em tribos indígenas. Que perdeu a perna na capoeira - porque também herdou da mitologia africana algumas coisas. Sendo uma mais esquisita, digamos. Que eu só percebi ontem de manhã, assistindo a um programete infanto-juvenil na TV Cultura. Alguém me diga, por favor, por que o Pererê fuma tanto. O cachimbo na boca é marca tanto quanto o gorro vermelho. Meio feio para um menino. Bem que Ziraldo poderia reinventar a lenda, né?
 

quarta-feira, 3 de dezembro de 2008

O Rap do Menino Invisível


Nasceu com a pele branca,
com os olhos verdes,
com a sina da miséria,
de uma história impossível.
Era tudo que tinha o menino invisível.
O pai nunca voltou no navio que embarcou.
Atropelada na rua, a mãe nunca acordou.
E na memória do menino miúdo ficou.
Ficou na corpo, na agressão,
na noite escura da morte,
nos dias negros da solidão.
Ele inventou família, fez amigos e irmão.
Não foi para abrigo, se criou na agonia.
Cresceu, viveu, resistiu no Coque, no Ibura, nas "URs", na periferia.
Era como bicho solto aquele menino Pixote.
Mas não queria aquela sina, não queria a morte.
Foi aprender na escola e ensinar no Hip Hop.
Dançou break na rua, cantou rap na rua, pintou grafite na rua.
Fez leitura nos livros, se guiou nos mestres. Luther King, Muhammed Ali, Malcom X.
Literatura, português, geografia e história.
Se formar na faculdade foi outra grande vitória.
De camelô pra funcionário, de menino pra homem.
Ele escapou daquela sina, mas não esquece do ontem.
Quer conhecer sua raiz, seu sobrenome.
Quer viajar pro Ceará.
Quer fazer outra rima pra sua paz encontrar.

Na periferia de si mesmo

A rima é a alma do rap. O rap, a música do hip hop. O hip hop, a expressão da periferia cujo dia se celebra exatamente amanhã, no mundo inteiro. E fazer uma rima diferente, menos óbvia, com a pobreza, a violência e a morte do que a gente se acostumou a chamar de periferia é o rap de Sérgio Ricardo Cavalcante Matos. Tudo isso tem na história dele, homem branco nascido há 34 anos, no Coque, comunidade de 40 mil pessoas, com o pior Índice de Desenvolvimento Humano do Recife. De tão cheia de ganhos e perdas - algumas sem volta - a história de Sérgio é uma daquelas que a gente não sabe se conta de trás para frente ou de frente para trás. Ele não não conheceu o pai, apanhou em casa, perdeu a mãe aos oito anos de idade, perambulou na rua, conheceu armas e drogas, caiu de mão em mão, chegou à escola somente aos 10 anos. Mas escapou da sina ruim: se formou em Sociologia, encontrou pares no hip hop, foi (re)batizado de Sociólogo da Favela e doa o que aprendeu a outrosjovens que poderiam repetir a história dele. Hoje, Sérgio está na periferia dele mesmo. E procura a rima que (ainda) não fez. Quer viajar ao Ceará, para alguém da família encontrar.

"Se eu não acreditasse na minha própria mãe, ia acreditar em quem? Só era a gente no mundo". A pergunta foi uma resposta à outra, feita na entrevista. Sérgio lembra apenas de algumas coisas que a mãe repassou sobre a vida deles dois. Ela falou que foi expulsa de casa, no Ceará, porque engravidou. Contou que abortou, que fugiu para o Recife. Disse que sabia falar três idiomas, que viajou no mundo e foi torturada porque era militante política. Confessou que Sérgio nasceu de um "romance com um gringo americano que veio num navio ao Recife, partiu e nunca mais voltou". O nome dela: Sara Cavalcante Matos. "Ela era inteligente, politizada demais".

Sara era prostituta. "Ela não me falava, mas eu via que ela saía toda a noite para o Porto do Recife", lembra Sérgio. "Quando ela voltava com dinheiro para casa, ela me arrumava todo. Quando não, eu apanhava. Acho que ela descontava a dor e a revolta do mundo em mim". Era 15 de novembro de 1982 - data gravada a ferro quente na memória dele -, quando Sara foi atropelada, em frente ao porto. "Eu fiquei esperando em casa. Mas ela nunca mais voltou". O único documento familiar que restou nas mãos de Sérgio foi o registro de nascimento da mãe. Pelo papel, ela nasceu em 25 de dezembro de 1947, na cidade de Sobral, no Ceará. Era filha de Zilka e neta de Emílio e Zuleika.

Sara era negra. Os olhos verdes de Sérgio, diz ele, são herança do pai que ele não conheceu. São também os olhos de gato e muitas (sobre)vidas. "Eu era bonitinho, afilado, todo mundo queria ficar comigo, depois que Sara morreu. Eu costumo dizer que fui salvo pelos olhos verdes e pela pele branca. Acho que se eu fosse negro, teria menos chance. Mas, de verdade, o que me salvou foi a solidariedade das comunidades carentes", observa Sérgio. E o menino passou de mão em mão, até os 21 anos de idade, quando achou que já podia se sustentar. Trabalhou de camelô, vendendo pilha, "muamba" e veneno de rato. Tinha ponto na Rua da Praia, Rua do Rangel e Beco do Veado, no Centro da cidade. "Só comia se tivesse dinheiro. Foi minha primeira profissão, onde aprendi a encarar as pessoas". Mas as pessoas não viam Sérgio.

O futuro sociólogo se fez menos invisível quando entrou numa sala de aulas. "A única coisa boa no tempo sem casa foi uma família me colocar na escola, quando eu já tinha 10 anos", fala. Sérgio morou no Coque, Rio Doce, UR 2, Vasco da Gama. No Ibura, na escola estadual Lagoa Encantada, ele fez até o 3º ano. "Difícil não cair no tráfico. Até hoje vivo tenso, rude, com medo de passar fome de novo".

"Tentei passar logo no vestibular e não consegui. Mas eu não podia desistir. Não tinha alternativa. Aí, estudei mais um ano com o que tinha, português, literatura e história", relembra. "Escolhi Sociologia porque conheci muita gente na rua que se preocupava com os movimentos sociais do país". Sérgio se formou na UFRPE, em 2003, e prometeu aosprofessores que "até os 50 anos de idade" terá o doutorado. Ficou conhecido por levar a cultura de rua à academia e vice-versa. Daí o codinome Sociólogo da Favela. "De cara, as pessoas pensam que eu faço apologia à favela. Se me conhecem, entendem que a favela é a minha história de vida. Tudo que ganhei veio das ruas".

Adolescente, Sérgio imitava o grupo Menudo com outros jovens. "A gente dançava nos clube e ganhava uns trocados. Foi quando eu percebi que a arte seria um caminho para não me perder", conta. "Nessa época, o break era muito forte no Brasil. Fui me encontrando nessa cena, criando grupos e um espaço para o hip hop na cidade". Com a dança, a música e o grafite, os pilares do movimento cultural, Sérgio hoje ensina como se constrói um cidadão. Está à frente da Associação Metropolitana do Hip Hop em Pernambuco, único filho que botou no mundo. A lida com as questões da periferia rendeu a Sérgio uma profissão na Secretaria Estadual de Desenvolvimento Social e Direitos Humanos. É coordenador de cultura. Cria projetos de educação para jovens de 16 a 24 anos, em situação de vulnerabilidade social. Jovens que poderiam repetir a história dele.

Falta ao Sociólogo da Favela fazer par com ele mesmo. Falta a casa. Falta a família. Sérgio mora na Avenida Dantas Barreto, junto com o amigo rapper Tiger. "Enquanto não tiver meu espaço, vou achar que continuo perambulando, como quando era menino. Ainda vou encontrar nem que seja um parente em Sobral. É um buraco existencial. Um jeito de reconhecer a minha humanidade". Sérgio quer viajar para o Ceará. Quer fazer outra rima com o vazio, refletido nos olhos. Os olhos verdes que já foram a redenção e hoje são solidão. Quer sair da periferia dele mesmo.