segunda-feira, 29 de março de 2010

A correspondência

Curioso. Meus últimos post têm a ver com Correios, mensagens, cartas. Pois, eis que entro no capítulo três do livro Bom dia, angústia! (assim, exclamando mesmo) e dou de óculos com o título A correspondência. Avanço um pouco mais nos "dizeres" e percebo que o texto já valeria a obra toda. Viajei para uma sala grande, de pé direito altíssimo, lotada de envelopes de todas as espessuras e papéis. De um monte de nomes e endereços ainda escritos à mão, destinados a rodar o mundo. Quantas histórias embaladas, seladas, carimbadas! Quantas seriam de alegria ou tristeza? Quantas de amor ou saudade? Quantas não seriam lidas pelos destinatários?
Sabe quando o prazer na obra é tanto, que a gente quase se apropria do que foi lido/visto/ouvido/tocado/degustado? Obrigada André Comte-Sponville. Um dia lhe conto, por carta, o que você me deu com A correspondência.

Dois trechos de A correspondência: "escreve-se no âmago do silêncio, aonde a fala quase não vai. Escreve-se onde se vive, onde se está o mais próximo de si e do outro". "Por que se escreve uma carta? Para habitar juntos a essencial solidão, a essencial separação, a essencial e comum fragilidade". 

Ps: foto feita em La Boca, Buenos Aires.

terça-feira, 23 de março de 2010

Um boa noite como concessão

Reencontrei o homem dos Correios do Recife, personagem da postagem do dia 3 de fevereiro (http://sobrevidasordinarias.blogspot.com/2010_02_01_archive.html). Depois do carnaval, que provavelmente lhe tirou o sossego, voltei a revê-lo regularmente sob a marquise da empresa de serviços postais. Ontem, como de costume, ele tinha uma publicação nas mãos e olhava atentamente nas figuras e letras. Ontem, ao contrário de sempre, nem reparei do que se tratava. Se era encarte de supermercado, jornal tablóide, Diário Oficial. Eu estava concentrada em capturá-lo na câmera do celular. Mas registrar a face do homem, sem que ele soubesse, deu um aperreio. Não porque o protagonista percebera. Foi que eu mesma senti um desconforto. Invadi a privacidade do "homem da rua". A prerrogativa do ser invisível (que todo mundo vê na calçada, mas ninguém enxerga) perdeu a graça para mim.A proposta de vidas ordinárias perdeu o sentido. Como se, ao fazer foto, ao expor aqui, eu furtasse a história de anonimato daquele homem. Anonimato que pode ter sido escolha dele, por que não?. Para diminuir meu desconserto, ofereci um boa noite. Nada demais, né? Eu sei, eu sei. Minha barriga tremeu.Suei.O homem reagiu subitamente. Levantou a cabeça, entretida na publicação, sorriu e acenou com o polegar do "legal", afastando de mim o medo ou arrependimento. Foi a concessão que eu precisava. E cá está a foto.

domingo, 7 de março de 2010

hola, estraño

Ele nunca soube da foto que fiz sua, naquele fim de tarde em Buenos Aires. Eu também nunca soube que nome ele tinha. Aonde ia com o violão? Que música faria? Por que andava de cabeça baixa? Cordas são fundamentais ao tango, foi o máximo que eu conclui. E ficamos ambos assim, desconhecidos e ligados por um instante, uma combinação (fortuita, diga-se de passagem) de abertura 8.0 com velocidade 25. Arte no ocaso. Acaso raro. Desde daquele dia de outubro, já tive vontade de alugar um outdoor gigante, naquela mesma praça. Quem é você?, seria a legenda. Já pensei também se ainda estaria vivo, se conheceria Baden Powell, se gostaria de se ver nesta foto, se, se, se... Hoje, prefiro que fique assim, sem nome, sem respostas. Um estranho numa foto.
E minha imaginação inteira para preencher.

Ps: ouvi dizer que, do espanhol para o português, "te estraño" significa estou com saudade. Não é... estranho? 


       Minha alma anda falando grego comigo.
     Nosce te ipsum,
    Conhece-te a ti mesmo.
     Tradução difícil do ser.