A boina, boné ou o capacete azul identifica quem faz parte da Missão das Nações Unidas para estabilização do Haiti, a Minustah. Mas existe no país um exército de invisíveis tão "presente" quanto os que trabalham de azul. É uma tropa de cidadãos haitianos e estrangeiros que não se destacam nas imagens da internet, televisão e jornal, mas cuja ajuda tem importância a olhos vistos. São porta-vozes de comunidades e integrantes de organizações civis, como a ActionAid, ONG internacional que atua há 11 anos no Haiti.
O escritório da ActionAid foi o único prédio que não desabou totalmente numa das ruas de Mariani, comunidade de Porto Príncipe. Uma equipe de 30 pessoas (sobretudo haitianos e brasileiros) tem feito o trabalho de emergência da organização no Haiti. É a única ONG atuando em Mariani, até agora. "Acabamos de conseguir um armazém, para abrigar e distrubuir o suprimentos. Já entregamos alimentos como manteiga de amendoim reforçada com vitamina, milho, óleo e farinha para2,5 mil pessoas. Estamos aguardando barracas, cobertores, caixas de leite em pó e fraldas, peças íntimas para mulheres e meninas, além de tubos de pasta e escovas de dente", diz Adriano Campolina, diretor regional da ActionAid na América Latina, instalado em Porto Príncipe desde a quarta-feira. "Um carregamento de sabão, enlatados, biscoitos, cordas e redes anti-mosquito também está chegando nos próximos dias", afirma o representante da ONG que existe há 37 anos e atua em 53 países.
Outra ação emergencial da ActionAid no Haiti tem sido localizar crianças que participam do programa de apadrinhamento da organização. Nessa busca, já foram encontradas as irmãs Wendy, de 12 anos, e Michou, 10 anos (foto acima). As meninas vivem com seus pais, Monique e Sony Destramy, em Mariani. A família está desabrigada e a comida é compartilhada com os vizinhos. A água que bebem vem de um córrego. "Tem sido muito difícil encontrar comida e quando encontramos é tudo muito caro. Não temos dinheiro para nada", conta Monique.
Os Destramy foram encontrados nas ruínas da casa. Sony trabalhava como vendedor de sacolas plásticas, mas estava afastado do trabalho porque ficou doente. Monique vendia copos de vidro, mas toda a mercadoria foi destruída no terremoto. "Eu estava do lado de fora da casa, descansando, quando tudo começou a tremer. Fiquei muito confuso. Não tinha a menor ideia do que estava acontecendo. Meus filhos estavam dentro da casa e tudo começou a desabar ao nosso redor. Aconteceu muito rápido. As crianças conseguiram sair sem se ferir, mas perdemos tudo", lembra Sony.
Wendy e Michou são apadrinhadas por doadores italianos. As duas frequentavam a escola local, mantida pela Cozpam, organização parceira da ActionAid. No distrito de Mariane, 45 crianças são apadrinhadas pela ActionAid. Outras 550 crianças também participam do programa em Philipeau, área menos afetada pela tragédia. Muitas pessoas estão deixando Porto Príncipe e procurando abrigo nas casas de parentes que vivem na zona rural do Haiti. "Nos só esperamos que nossos filhos voltem a estudar e que a gente consiga um lugar para dormir", completou Monique.
O apadrinhamento de crianças coordenado pela ActionAid funciona através de doações. Com a contribuição mensal de R$ 35, o doador cria um vínculo solidário com uma criança que vive em uma comunidade beneficiada pelo trabalho da organização. receber periodicamente fotos e mensagens desta criança. "O doador acompanha os resultados através de fotos e mensagens da criança", explica a coordenadora executiva da ActionAid Brasil, Rosana Heringer.
A doação é direcionada a projetos nas áreas de alimentação, educação, saúde e moradia, que beneficiam não só a criança, mas a comunidade. No Haiti, o foco da ONG tem sido sobre agricultura sustentável e prevenção de Aids em mulheres e jovens. "Estamos prevendo que vamos ampliar o trabalho da agricultura, porque as pessoas estão migrando da capital para a zona rural", observa Rosana, que recentemente esteve na Índia, para acompanhar o trabalho de reconstrução de comunidades destruídas pelo terremoto doOceano Índico, ou tsunami, de 2004. "Já se passaram cinco anos e eles ainda têm muito por fazer. Será o mesmo esforço no Haiti", avalia. No Brasil desde 2000, a ActionAid atua em 13 estados (em Pernambuco têm parceria com organizações de cinco comunidades). São 400 mil doadores individuais em todo o mundo, sendo 2,5 mil brasileiros.
Foto de Moisés Saman/ voluntário da ActionAid
Texto publicado no Diario de Pernambuco, em 24 de janeiro de 2010.
domingo, 24 de janeiro de 2010
quarta-feira, 20 de janeiro de 2010
A infância roubada do Haiti
Apenas uma semana e 300 pedidos de adoção de crianças haitianas. É o que registra a Embaixada do Haiti em Brasília. A tragédia do terremoto sobre o já maltratado país caribenho está fazendo brasileiros olharem para o que ele tem de mais frágil: sua infância. A Justiça de Pernambuco e organizações civis internacionais com representações no Haiti e no Recife vêm discutindo a questão. O cenário de emergência, a falta de estrutura de estado haitiano (todos os cartórios da capital estão em ruínas), o desconhecimento sobre a legislação estrangeira e a possibilidade de gerar traumas ainda maiores são obstáculos a esse delicado processo. Antes do terremoto, havia 380 mil órfãos no Haiti.
A porta-voz do Unicef, Veronique Taveau, declarou ontem que considera a adoção o último recurso de ajuda estrangeira ao Haiti. "Nossa política é tentar a todo custo encontrar parentes da criança. A adoção é quando todas as possibilidades fracassarem", diz Veronique. Os esforços são feitos para reunir as crianças com suas famílias. Só se isso for impossível, alternativas permanentes, como a adoção, devem ser consideradas pelas autoridades competentes. "Por enquanto, encontramos esses órfãos, identificamos e registramos, e depois privilegiamos a reunificação com a família, mesmo que seja com tio, primo ou avô", ressalta a porta-voz. Não há número exato de quantas crianças ficaram órfãs após o terremoto. "Mas se as estimativas dizem que cerca de 2 milhões de pessoas foram afetadas, e as crianças são a metade da população, é fácil calcular", observa Veronique. Ela reage às informações sobre que, em alguns casos, estão sendo acelerados os trâmites para adoções internacionais.
A coordenadora no Recife da organização Save The Children, Fernanda Ferreira, compartilha a ideia da adoção por estrangeiro como último esforço de ajuda. Responsável no Brasil por dar treinamentos sobre situações de emergência (terremoto, deslizamento, enchentes, conflito armado), Fernanda destaca que a reunificação familiar deve ser prioridade para os órfãos haitianos. "Parentes adultos também vivem o trauma e são referência. Uma criança adotada em um país estrangeiro poderá perder essa identidade afetiva, o que gera mais trauma", avalia. Parceira do Unicef, a Save The Children tem escritório e equipe de emergência em Porto Príncipe. Até terça-feira que vem, a organização realiza em Olinda um seminário internacional com profissionais que atuam em situações de emergência.
O secretário executivo da Comisão Estadual Judiciária de Adoção (Ceja), o juiz Humberto Vasconcelos, reconhece que a situação do Haiti sensibiliza brasileiros, mas sugere que interessados em adotar crianças olhem para a própria realidade. "O que vemos no Haiti desperta em nós um potencial de doação muito grande. Vamos aproveitar esse espírito e adotar ou mesmo apadrinhar crianças brasileiras. Temos cenários de extrema carência bem semelhantes ao do Haiti", alerta Vasconcelos. "Mas se alguém tiver interesse absoluto em uma criança haitiana, pode procurar a Ceja", orienta.No Recife, 380 crianças estão em abrigos à espera de novos pais.
Quem tem interesse sobre uma criança de país signatário da Convenção de Haia (que não é o caso do Haiti), precisa, primeiro, de uma habilitação internacional para adoção. Para isso, uma vara de infância pode oferecer informações. Se for habilitado, o interessado deve procurar, então, o órgão responsável no país natal da criança. A Convenção de Haia regulamenta a adoção internacional. Quem pretende adotar uma criança haitiana precisa solicitá-la através da embaixada, que faz intermediação com as autoridades do Haiti. "O estado haitiano está sem condições de legalizar adoções. E quando a criança é de um país que não participa de Haia, o simples acolhimento dela no estrangeiro pode ser caracterizado como sequestro internacional de incapaz", explica o professor da Unicap e doutor em Ciência Política, Thales Castro.
Os brasileiros que procuraram a embaixada em Brasília foram orientados a mandar e-mails com dados pessoais. "A adoção internacional não deve ocorrer em situações de guerras, calamidades e desastres naturais, por não ser possível verificar o histórico pessoal e familiar da criança que se pretende colocar em adoção", diz, em nota, a subsecretária para Promoção dos Direitos da Criança e do Adolescente da Presidência da República e presidente do Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente (Conanda), Carmen Oliveira.
Texto publicado no Diario de Pernambuco, em 20 de janeiro de 2010.
A porta-voz do Unicef, Veronique Taveau, declarou ontem que considera a adoção o último recurso de ajuda estrangeira ao Haiti. "Nossa política é tentar a todo custo encontrar parentes da criança. A adoção é quando todas as possibilidades fracassarem", diz Veronique. Os esforços são feitos para reunir as crianças com suas famílias. Só se isso for impossível, alternativas permanentes, como a adoção, devem ser consideradas pelas autoridades competentes. "Por enquanto, encontramos esses órfãos, identificamos e registramos, e depois privilegiamos a reunificação com a família, mesmo que seja com tio, primo ou avô", ressalta a porta-voz. Não há número exato de quantas crianças ficaram órfãs após o terremoto. "Mas se as estimativas dizem que cerca de 2 milhões de pessoas foram afetadas, e as crianças são a metade da população, é fácil calcular", observa Veronique. Ela reage às informações sobre que, em alguns casos, estão sendo acelerados os trâmites para adoções internacionais.
A coordenadora no Recife da organização Save The Children, Fernanda Ferreira, compartilha a ideia da adoção por estrangeiro como último esforço de ajuda. Responsável no Brasil por dar treinamentos sobre situações de emergência (terremoto, deslizamento, enchentes, conflito armado), Fernanda destaca que a reunificação familiar deve ser prioridade para os órfãos haitianos. "Parentes adultos também vivem o trauma e são referência. Uma criança adotada em um país estrangeiro poderá perder essa identidade afetiva, o que gera mais trauma", avalia. Parceira do Unicef, a Save The Children tem escritório e equipe de emergência em Porto Príncipe. Até terça-feira que vem, a organização realiza em Olinda um seminário internacional com profissionais que atuam em situações de emergência.
O secretário executivo da Comisão Estadual Judiciária de Adoção (Ceja), o juiz Humberto Vasconcelos, reconhece que a situação do Haiti sensibiliza brasileiros, mas sugere que interessados em adotar crianças olhem para a própria realidade. "O que vemos no Haiti desperta em nós um potencial de doação muito grande. Vamos aproveitar esse espírito e adotar ou mesmo apadrinhar crianças brasileiras. Temos cenários de extrema carência bem semelhantes ao do Haiti", alerta Vasconcelos. "Mas se alguém tiver interesse absoluto em uma criança haitiana, pode procurar a Ceja", orienta.No Recife, 380 crianças estão em abrigos à espera de novos pais.
Quem tem interesse sobre uma criança de país signatário da Convenção de Haia (que não é o caso do Haiti), precisa, primeiro, de uma habilitação internacional para adoção. Para isso, uma vara de infância pode oferecer informações. Se for habilitado, o interessado deve procurar, então, o órgão responsável no país natal da criança. A Convenção de Haia regulamenta a adoção internacional. Quem pretende adotar uma criança haitiana precisa solicitá-la através da embaixada, que faz intermediação com as autoridades do Haiti. "O estado haitiano está sem condições de legalizar adoções. E quando a criança é de um país que não participa de Haia, o simples acolhimento dela no estrangeiro pode ser caracterizado como sequestro internacional de incapaz", explica o professor da Unicap e doutor em Ciência Política, Thales Castro.
Os brasileiros que procuraram a embaixada em Brasília foram orientados a mandar e-mails com dados pessoais. "A adoção internacional não deve ocorrer em situações de guerras, calamidades e desastres naturais, por não ser possível verificar o histórico pessoal e familiar da criança que se pretende colocar em adoção", diz, em nota, a subsecretária para Promoção dos Direitos da Criança e do Adolescente da Presidência da República e presidente do Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente (Conanda), Carmen Oliveira.
Texto publicado no Diario de Pernambuco, em 20 de janeiro de 2010.
segunda-feira, 18 de janeiro de 2010
Haiti, futuro Timor-Leste?
Neste modesto blog, dei lugar a vozes dissonantes da maioria das declarções sobre a Missão das Nações Unidas de Estabilização no Haiti (Minustah). Vozes que acreditam em um novo Haiti, mas não de uma nova pátria descaracteriza. Vozes que pedem menos armas, menos repressão e mais escolas e hospitais. Vozes que acreditam num futuro sustentável e não de mentirinha. Soberano e não dominado.
Hoje, o espaço é para um general do Exército. Um homem que segurou armas, enfrentou gangues, cumpriu ordens da ONU. Um homem que, de certa forma, dá a cara do Exército à tapa, quando admite que a missão iniciada em 2004 falha com haitianos ao fazê-los sonhar com um novo Haiti. Sonhar não basta.
O presente do Haiti está na cara do mundo: corpos, sobreviventes, manisfestações solidárias e declarações oficiais de países ricos e em desenvolvimento. O futuro do país caribenho, que já viu e ouviu promessas, está lá trás. Está no passado de outro país pobre. Numa história marcada também pela instabilidade política e pela violência. O general do Exército e comandante militar do Nordeste, Américo Salvador de Oliveira avalia que um novo (e sustentável) Haiti só será possível com a intervenção da ONU. "Se as Nações Unidas não fizerem como no Timor-Leste, só um milagre", declarou o general, que recebeu o comando da região este ano. Servindo no Nordeste pela primeira vez, o comandante nascido em Santos (SP) conversou com a reportagem sobre a "terra prometida" ao Haiti, os bastidores do trabalho das tropas brasileiras no país, futebol e a Copa do Mundo de 2014 no Brasil.
Timor-Leste, o exemplo
Em maio de 2002, o Timor-Leste tornou-se um país independente. O processo de cerca de três anos se deu com a ajuda das Nações Unidas. Com uma história marcada pela luta pela soberania e por guerras civis, o país recebeu a primeira força de paz em 1999. O Exército brasileiro fez e faz parte das organizações que ajudam o país em seu caminho para a plena soberania e paz duradoura. "Não adianta colocar todo o dinheiro do mundo nas mãos dos haitianos. Eles não saberão o que fazer", observa o general Salvador, que ainda guarda a boina azul usada no Haiti e que identifica missões humanitárias da ONU. "A intervenção que aconteceu no Timor Leste não foi de dominação. Não tirou as características da pátria. O brasileiro Sérgio Vieira de Mello foi quem colocou os recursos onde realmente o país precisava". Diplomata, Vieira de Mello exerceu o cargo de administrador de transição da ONU no Timor-Leste. Por essa e outras atuações, recebeu a nomeação de Alto Comissário das Nações Unidas. Em 2003, morreu em Bagdá, vítima de atentado atribuído à Al-Qaeda contra a sede local da ONU.
2004, a promessa
Os planos para o Haiti eram muitos em 2004, quando a Missão das Nações Unidas para a Estabilização do Haiti (Minustah) chegou ao país. Criar condições para o exercício da democracia era um deles. Com esse viria a garantia do direito à educação, saúde, moradia e serviços básicos, como de água tratada. Há críticos contra e a favor do grande projeto com o que o mundo se comprometeu. Há quem apoie e quem desacredite na Minustah. "Eu também reclamo que faltam escolas e hospitais. Quem fala negativamente da Minustah tem razão, em parte. O problema, eu vejo, está nas promessas, nos planos que não aconteceram. Os haitianos só veem soldados nas ruas", observa. "Existem muitas propostas prontas, mas elas precisam de recursos. A comunidade internacional fez promessas, mas esse dinheiro não chega. Então, a missão como um todo fica só com a cara de armas ou de repressão da polícia local", analisa o general Salvador.
Para o comandante militar do Nordeste, a parte "bem feita" da missão está com o Brasil. "Nós estamos fazendo mais do que fomos destacados para fazer, que é liderar o componente militar da Minustah, oferecer segurança ao país, coordenando os 17 contingentes de militares do mundo inteiro no Haiti. Eu mesmo, que vivi os seis primeiros meses da missão, atuei na questão da assistência social, reconstruindo uma escola e chamada de Duque de Caxias; construindo postos de saúde; criando uma praça pública em Cité du Soleil, uma das comunidades mais miseráveis; e perfurando poços", diz o general.
Brasileiros, o bastidor
O quartel das tropas brasileiras não foi atingido pelo terremoto. Por isso mesmo, as "baixas" ou mortes no efetivo foram menores do que em contingentes de outros países, como Canadá. Até o fechamento desta edição, às 22h, eram 17 as vítimas militares do Brasil. "Quando nós chegamos em 2004, o abrigamento era improvisado. Não tínhamos ainda apoio da ONU e ficávamos acantonados no aeroporto, em um galpão e barracas. Depois, permanecemos em uma universidade em construção, até chegarmos nas instalações semifixas. Chegamos a ter três canais de televisão", detalha o comandante Salvador. Apesar do aparato, o general não conseguiu contato com o "amigo particular" e comandante do atual contingente brasileiro no Haiti, o general Floriano Peixoto.
No próximo dia 28, a tropa brasileira será totalmente renovada. Cerca de mais 1,3 mil militares irão trabalhar em um cenário que talvez sequer imaginem. "Brasileiro gosta de ajudar sem qualquer retorno. Os outros países às vezes têm até mais condições, mas não têm sensibilidade com nós", afirma o general Salvador, que faz questão de se apresentar usando a farda camuflada. "É a minha preferida. De combate. Foi uma dessa que usei no Haiti, de onde não saí um dia sequer naqueles seis meses", conta.
Para entrar no Haiti, o militar brasileiro precisa passar por uma preparação de seis meses (o mesmo tempo de permanência da cada contingente em missão). Ser voluntário é o primeiro requisito, mas não o único. "Nós trabalhamos com situações, com problemas que o militar vai encontrar no lugar. Fazemos inúmeros testes, inclusive da saúde psicológica do voluntário. A mesma coisa na desmobilização, na volta da missão. Tentamos desfazer possíveis traumas que afetem a família do militar e sua carreira", garante o comandante.
Em toda missão considerada de paz surgem situações traumatizantes, afirma o general Salvador. "É comum haver o aproveitamento da miséria. A exploração. Há casos em que se acusa o militar de abuso à uma mulher, para requerer indenização, por exemplo", conta o comandante. "Nós já recebemos denúncias sobre isso, mas nada foi provado", afirma. Uma traição também marcou a memória do general Salvador. "A polícia de lá é corrupta e violenta. O diretor da Polícia Nacional do Haiti, homem de confiança para nós, foi o mentor do sequestro da dona do Hotel Montana. Aconteceu na época do nosso 3º contingente", relembra.
Futebol, o símbolo
A violência deu uma trégua ao Haiti no dia 18 deagosto de 2004. "O país parou para ver a Seleção do Brasil. Eu fui um dos eram contra o jogo. Tínhamos acabado de chegar. O risco era muito grande. Ainda não tínhamos dominado a segurança", conta o general. "Mas o comportamento dos haitianos, inclusive das gangues, foi de calma. O que nos provou que a índole do povo é pacífica", rememora o comandante. "A organização vendeu o dobro de ingressos em relação à capacidade dos lugares no estádio. Fiquei imaginando no que daria isso no Brasil", compara o general, para quem o recrudecimento das gangues pode ser mais um desafio à missão. "O presídio do Haiti foi totalmente afetado pelo terremoto. Quem não morreu, foi solto. Quem estava nas delegacias também. Mas acredito que essas lideranças serão presas novamente. O problema é não ter onde prender", avalia.
Nascido em Santos (SP), o general Salvador é torcedor da Seleção Brasileira. "Eu fui Corinthians. Mas desisti. De maneira geral, o futebol do Brasil só tem mercenário", critica o comandante. Ao ser questionado sobre a possibilidade do Exército atuar na segurança do Brasil durante a Copa do Mundo de 2014, o oficial é enfático: "o governador teria que ser convocado. Antes disso, o governador teria que declarar que a segurança dele é insuficiente. Que administrador gosta disso?", devolve o general. O Comando Militar do Nordeste compreende nove estados, em três grandes comandos: 6ª Região Militar (BA e SE); 7ª Região Militar - 7ª Divisão de Exército (AL, PE, PB e RN) e 10ª Região Militar (CE, PI e MA), com sedes, respectivamente, nas cidades de Salvador, Recife e Fortaleza.
Texto publicado no Diario de Pernambuco. http://www.diariodepernambuco.com.br/2010/01/19/mundo4_0.asp
sábado, 16 de janeiro de 2010
A dor em outra dimensão
Doulè. Foi assim que Franck Seguey escreveu ontem, no bloco de anotação da reportagem, o que significa dor, na língua oficial predominante do Haiti, o crioulo. Mas não há tradução para o que sentem ele e a esposa, Michaelle Desrosiers, únicos haitianos no Recife. O casal de professores universitários está na capital há quase dois anos. "Fiquei aqui 22 meses na expectativa de receber notícia ruim. Mas não imaginei que chegasse a essa dimensão", desabafou Franck, durante entrevista na UFPE, onde ele e a esposa concluíram, neste mês, o mestrado em Serviço Social. Eles foram salvos. Planejavam chegar no Haiti na última terça-feira, dia 12, dia do terremoto. Porque o voo não tinha assentos à venda nessa data na internet, compraram as passagens para o dia 14. Foram salvos. Mas não sabem como vão sobreviver na dor do Haiti.
A volta ao país natal foi desejada pelo casal antes mesmo da chegada no Brasil: logo após a conclusão do mestrado. Mas as passagens agora estão guardadas na mochila de nylon gasta de Franck, que até 2007 foi professor do curso de Sociologia da Faculdade Estadual de Ciências Humanas do Haiti, em Porto Príncipe. Uma nova data está marcada: 8 de fevereiro. "Se eu pudesse, voltaria hoje. Mas não vou levar mais problema ao país e não vou colocar a minha família em risco", reconhece Franck.
Michaelle está no 5º mês de gestação do segundo filho. A filha, "recifense da gema", diz o haitiano, tem 15 meses de vida. "Lorrene já nasceu lutando com a gente. Ela nasceu prematura", conta. As primeiras notícias de familiares e amigos Franck recebeu justamente quando levava a criança à consulta do neurologista, no Imip.
Franck e Michaelle têm parentes e amigos na capital haitiana e outras cidades do país caribenho. "Pelo MSN, pedi a uma pessoa que fosse na casa da minha mãe e quatro irmãs, que fica a 10 minutos do Palácio Nacional, sede da presidência, em Porto Príncipe. Então, soube que eles sobreviveram, mas estão sem comida e sem água. Também soube que o pai de Michaelle está vivo", conta o professor, formado em Sociologia e em Educação. Ele e Michaelle recebeiam bolsas de estudos no mestrado no valor de R$ 1,2 mil, por mês, cada.
Em caráter extraordinário, a reitoria UFPE conseguiu manter mais um mês do benefício. O casal devolveria o apartamento alugado na Cidade Universitária e chegou a doar parte dos pertences. "Agora, a gente vai ver com a faculdade o que pode fazer", diz Franck, protestante da Igreja Adventista, cuja crença é na volta de Jesus à terra. A maioria dos haitianos, 64%, professa a religião católica.
O futuro - "A minha preocupação principal não é quem morreu. São os 13 milhões de haitianos que estão sobrevivendo na miséria", afirma Franck. "Acredito que o Haiti tem que ser reconstruído. Mas não acredito que isso virá da Minustah", observa o professor, cujo tema de mestrado foi Globalização neoliberal e movimentos populares no Haiti. Minustah é a Missão das Nações Unidas pela estabilização no Haiti (Mission des Nations Unies pour la stabilisation en Haïti, em francês), criada em 2004 pelo Conselho de Segurança da ONU. Existem, segundo Franck, nove mil militares e 1,5 mil civis na Minustah. O efetivo do Brasil, que comanda a missão da ONU, tem 1,3 mil soldados. "Por que não levam mais médicos, professores e engenheiros?", questiona.
"São quatro anos de ocupação do Haiti e não se evitou desgraças", critica Franck, citando casos de assassinato, estrupos de mulheres e sequestros de haitianos. "A Minustah teve chance de reconstruir o Haiti no furacão de 2008, mas não fez", avalia. O Haiti viveu dois períodos de ditadura militar (de 1957 a 1990 e de 1991 a 1994). "A gente não teria capacidade de impedir o terremoto, mas poderia diminuir as consequências da tragédia, se as autoridades quisessem isso. Vou voltar com a minha família para aventurar um futuro no meu próprio país", diz,
Matéria publicada no Diario de Pernambuco, dia 16 de janeiro de 2010, página A21.
Foto: Renato Spencer/ especial para o Diario de Pernambuco.
Matéria publicada no Diario de Pernambuco, dia 16 de janeiro de 2010, página A21.
Foto: Renato Spencer/ especial para o Diario de Pernambuco.
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quinta-feira, 14 de janeiro de 2010
O homem "abençoado"
Ainda que fosse possível prever, ninguém daria a dimensão exata. A tragédia do Haiti e suas consequências ultrapassam qualquer exercício de imaginação, adivinhação, premonição. Até mesmo de quem já enfrentou desafios em que sobreviver é um verdadeiro milagre.
Um telefonema, uma ordem pode ser dada a qualquer momento, para que 28 homens do Corpo de Bombeiros de Pernambuco embarquem rumo ao Haiti. Entre eles, está o tenente-coronel Almir da Rocha Silva, de 39 anos. Aos 24 de carreira, ele irá chefiar essa força-tarefa, especializada em busca, salvamento e ações táticas. A equipe partirá numa missão histórica para a corporação. Uma missão que eles jamais imaginaram.
"Eu poderia levar muito mais homens, mas, considerando o cenário complexo, a especificidade do trabalho e o tempo de afastamento, 28 homens é um bom efetivo", diz o tenente-coronel do Grupamento de Busca, Salvamento e Ações Táticas dos Bombeiros de Pernambuco, Almir da Rocha, responsável por selecionar e comandar a equipe da força-tarefa no Haiti. "O grupamento como um todo tem 120 homens. É um efetivo de respostas especiais, que possui treinamentos em áreas que outros bombeiros não têm. Estou buscando mesclar profissionais com capacitação em estruturas colapsadas com atendimento hospitalar", explica oficial, cuja experiência inclui as tragédias dos edifícios Areia Branca e Serrambi. O grupamento foi formado há um ano e meio, para trabalharr sobretudo nas emergências de desabamento do estado. Há também homens especializados em inundações e ambientes confinados.
"A gente não pode sair daqui achando que vai encontrar facilidade, que vai encontrar água, energia, lugar para dormir e trocar de roupa. A gente vai viajar com a logística completa", conta Rocha. O aparato tecnológico será fundamental na força-tarefa. "Tem grandes montes de concreto e ferro. Mas não adianta a gente investir toda a energia em ações manuais e máquinas pesadas, supondo que existe alguém sob os escombros ou algum corpo. Algumas ações precisarão de delicadeza", observa o oficial. Câmeras de vídeo ajudarão a localizar vítimas entre os destroços. "Será parecido com o que faz uma câmera de videolaparoscopia", explica.
A equipe está ansiosa para viajar. "Mas a gente não pode deixar a emoção sobrepor os protocolos e as práticas, para não comprometer a resposta", admite Rocha, pai de quatro filhos, "todos loucos pelos Bombeiros", e casado com uma médica do Samu, que ele conheceu "na rua, salvando gente". "É necessário ter calma. O cenário do Haiti não vai mudar de um dia para o outro. Existem missões do mundo inteiro a postos. A gente vai esperar. Mas será difícil dormir esses dias, esperando um telefonema ordenando 'embarquem todos'", confessa o oficial. "No mínimo, uniremos 28 histórias de vida", diz o bombeiro que a cada novo desafio, confirma que o seu serviço é "abençoado".
Texto publicado no Diario de Pernambuco, de 15 de janeiro de 2010, página A12.
Tenente-coronel Almir da Rocha vai chefiar força-tarefa pernambucana no Haiti. Foto: Juliana Leitão/DP/.A Press |
"Eu poderia levar muito mais homens, mas, considerando o cenário complexo, a especificidade do trabalho e o tempo de afastamento, 28 homens é um bom efetivo", diz o tenente-coronel do Grupamento de Busca, Salvamento e Ações Táticas dos Bombeiros de Pernambuco, Almir da Rocha, responsável por selecionar e comandar a equipe da força-tarefa no Haiti. "O grupamento como um todo tem 120 homens. É um efetivo de respostas especiais, que possui treinamentos em áreas que outros bombeiros não têm. Estou buscando mesclar profissionais com capacitação em estruturas colapsadas com atendimento hospitalar", explica oficial, cuja experiência inclui as tragédias dos edifícios Areia Branca e Serrambi. O grupamento foi formado há um ano e meio, para trabalharr sobretudo nas emergências de desabamento do estado. Há também homens especializados em inundações e ambientes confinados.
"A gente não pode sair daqui achando que vai encontrar facilidade, que vai encontrar água, energia, lugar para dormir e trocar de roupa. A gente vai viajar com a logística completa", conta Rocha. O aparato tecnológico será fundamental na força-tarefa. "Tem grandes montes de concreto e ferro. Mas não adianta a gente investir toda a energia em ações manuais e máquinas pesadas, supondo que existe alguém sob os escombros ou algum corpo. Algumas ações precisarão de delicadeza", observa o oficial. Câmeras de vídeo ajudarão a localizar vítimas entre os destroços. "Será parecido com o que faz uma câmera de videolaparoscopia", explica.
A equipe está ansiosa para viajar. "Mas a gente não pode deixar a emoção sobrepor os protocolos e as práticas, para não comprometer a resposta", admite Rocha, pai de quatro filhos, "todos loucos pelos Bombeiros", e casado com uma médica do Samu, que ele conheceu "na rua, salvando gente". "É necessário ter calma. O cenário do Haiti não vai mudar de um dia para o outro. Existem missões do mundo inteiro a postos. A gente vai esperar. Mas será difícil dormir esses dias, esperando um telefonema ordenando 'embarquem todos'", confessa o oficial. "No mínimo, uniremos 28 histórias de vida", diz o bombeiro que a cada novo desafio, confirma que o seu serviço é "abençoado".
Texto publicado no Diario de Pernambuco, de 15 de janeiro de 2010, página A12.
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"Uma vida por R$ 1,00"
Não tem texto meu ou de qualquer pessoa que faça jus ao desastre no Haiti e ao que foi/é/fez/faz dona Zilda Arns. Copio aqui, então, as palavras dela mesma, escritas para o discurso que daria no país,
pouco antes do terremoto.
"Agradeço o honroso convite que me foi feito. Quero manifestar minha grande alegria por estar aqui com todos vocês em Porto Príncipe, Haiti, para participar da assembleia de religiosos.pouco antes do terremoto.
Como irmã de dois franciscanos e de três irmãs da Congregação das Irmãs Escolares de Nossa Senhora, estou muito feliz entre todos vocês. Dou graças a Deus por este momento.
Na realidade, todos nós estamos aqui, neste encontro, porque sentimos dentro de nós um forte chamado para difundir ao mundo a boa notícia de Jesus. A boa notícia, transformada em ações concretas, é luz e esperança na conquista da paz nas famílias e nas nações. A construção da paz começa no coração das pessoas e tem seu fundamento no amor, que tem suas raízes na gestação e na primeira infância, e se transforma em fraternidade e responsabilidade social.
A paz é uma conquista coletiva. Tem lugar quando encorajamos as pessoas, quando promovemos os valores culturais e éticos, as atitudes e práticas da busca do bem comum, que aprendemos com nosso mestre Jesus: “eu vim para que todos tenham vida e a tenham em abundância (Jo 10.10)".
Espera-se que os agentes sociais continuem, além das referências éticas e morais de nossa Igreja, a ser como ela, mestres em orientar as famílias e comunidades, especialmente na área da saúde, educação e direitos humanos. Deste modo, podemos formar a massa crítica das comunidades cristãs e de outras religiões em favor da proteção da criança desde a concepção, e mais excepcionalmente até os seis anos, e do adolescente. Devemos nos esforçar para que nossos legisladores elaborem leis e os governos executem políticas públicas que incentivem a qualidade da educação integral das crianças e saúde, como prioridade absoluta.
O povo seguiu Jesus porque ele tinha palavras de esperança. Assim, nós somos chamados para anunciar as experiências positivas e os caminhos que levam as comunidades, famílias e pais a serem mais justos e fraternos.
Como discípulos e missionários, convidados a evangelizar, sabemos que força propulsora da transformação social está na prática do maior de todos os mandamentos da Lei de Deus: o amor, expressado na solidariedade fraterna, capaz de mover montanhas: “Amar a Deus sobre todas as coisas e ao próximo como a nós mesmos” significa trabalhar pela inclusão social, fruto da Justiça; significa não ter preconceitos, aplicar nossos melhores talentos em favor da vida plena, prioritariamente daqueles que mais necessitam. Somar esforços para alcançar os objetivos, servir com humildade e misericórdia, sem perder a própria identidade. Todo esse caminho necessita de comunicação constante para iluminar, animar, fortalecer e democratizar nossa missão de fé e vida. Cremos que esta transformação social exige um investimento máximo de esforços para o desenvolvimento integral das crianças. Este desenvolvimento começa quanto a criança se encontra ainda no ventre sagrado da sua mãe. As crianças, quando estão bem cuidadas, são sementes de paz e esperança. Não existe ser humano mais perfeito, mais justo, mais solidário e sem preconceitos que as crianças.
Não é por nada que disse Jesus: “… se vocês não ficarem iguais a estas crianças, não entrará no Reino dos Céus” (MT 18,3). E “deixem que as crianças venham a mim, pois deles é o Reino dos Céus” (Lc 18, 16).
Hoje vou compartilhar com vocês uma verdadeira história de amor e inspiração divina, um sonho que se fez realidade. Como ocorreu com os discípulos de Emaús (Lc 24, 13-35), “Jesus caminhava todo o tempo com eles. Ele foi reconhecido a partir do pão, símbolo da vida.” Em outra passagem, quando o barco no Mar da Galileia estava prestes a afundar sob violentas ondas, ali estava Jesus com eles, para acalmar a tormenta. (Mc 4, 35-41).
Com alegria vou contar o que “eu vi e o que tenho testemunhado” a mais de 26 anos desde a fundação da Pastoral da Criança, em setembro de 1983.
Aquilo que era uma semente, que começou na cidade de Florestópolis, Estado do Paraná, no Brasil, se converteu no Organismo de Ação Social da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil, presente em 42 mil comunidades pobres e nas 7.000 paróquias de todas as Dioceses da Brasil.
Por força da solidariedade fraterna, uma rede de 260 mil voluntários, dos quais 141 mil são líderes que vivem em comunidades pobres, 92% são mulheres, e participam permanentemente da construção de um mundo melhor, mais justo e mais fraterno, em serviço da vida e da esperança. Cada voluntário dedica em média 24 horas ao mês a esta missão transformadora de educar as mães e famílias pobres, compartilhar o pão da fraternidade e gerar conhecimentos para a transformação social.
O objetivo da Pastoral da Criança é reduzir as causas da desnutrição e a mortalidade infantil, promover o desenvolvimento integral das crianças, desde sua concepção até o seis anos de idade. A primeira infância é uma etapa decisiva para a saúde, a educação, a consolidação dos valores culturais, o cultivo da fé e da cidadania com profundas repercussões por toda a vida.
Um pouco de história
Sou a 12ª de 13 irmãos, cinco deles são religiosos. Três irmãs religiosas e dois sacerdotes franciscanos. Um deles é D. Paulo Evaristo, o Cardel Arns, Arcebispo emérito de São Paulo, conhecido por sua luta em favor dos direitos humanos, principalmente durante os vinte anos da ditadura militar do Brasil.
Em maio de 1982, ao voltar de uma reunião da Organização das Nações Unidas (ONU), em Genebra, D. Paulo me chamou pelo telefone à noite. Naquela reunião, James Grant, então diretor executivo da Unicef (Fundo das Nações Unidas para a Infância), falou com insistência sobre o soro oral. Considerado como o maior avanço da medicina no século passado, esse soro era capaz de salvar da morte milhões de crianças que poderiam morrer por desidratação devido a diarreia, uma das principais causas da mortalidade infantil no Brasil e no mundo. James Grant conseguiu convencer a D. Paulo para que motivasse a Igreja Católica a ensinar as mães a preparar e administrar o soro oral. Isto podia salvar milhares de vidas.
Viúva fazia cinco anos, eu estava, naquela noite histórica, reunida com os cinco filhos, entre os nove e dezenove anos, quando recebi a chamada telefônica do meu irmão D. Paulo. Ele me contou o que havia passado e me pediu para refletir sobre ele. Como tornar realidade a proposta da Igreja de ajudar a reduzir a morte das crianças? Eu me senti feliz diante deste novo desafio. Era o que mais desejava: educar as mães e famílias para que soubessem cuidar melhor de seus filhos!
Creio que Deus, de certo modo, havia me preparado para esta missão. Baseada na minha experiência como médica pediatra e especialista em saúde pública e nos muitos anos de direção dos serviços públicos de saúde materna-infantil, compreendi que, além de melhorar a qualidade dos serviços públicos e facilitar às mães e crianças o acesso a eles, o que mais falta fazia às mães pobres era o conhecimento e a solidariedade fraterna, para que pudessem colocar em prática algumas medidas básicas simples e capazes de salvar seus filhos da desnutrição e da morte, como por exemplo a educação alimentar e nutricional para as grávidas e seus filhos, a amamentação materna, as vacinas, o soro caseiro, o controle nutricional, além dos conhecimentos sobre sinais e sintomas de algumas doenças respiratórias e como as prevenir.
Me vem à mente então a metodologia que utilizou Jesus para saciar a fome de 5.000 homens, sem contar as mulheres e as crianças. Era noite e tinham fome. Os discípulos disseram a Jesus que o melhor era que deixassem suas casa, mas Jesus ordenou: “Dai-lhes vós de comer”. O apóstolo Felipe disse a Jesus que não tinham dinheiro para comprar comida para tanta gente. André, irmão de Simão, sinalou a uma criança que tinha dois peixes e cinco pães. E Jesus mandou que se sentassem em grupos de cinquenta a cem pessoas (em pequenas comunidades). Então pensei: “Por que morrem milhões de crianças por motivos que podem facilmente ser prevenidos? O que faz com que eles se tornem criminosos e violentos na adolescência?”
Recordei o inicio da minha carreira, quando me desafiei a querer diminuir a mortalidade infantil e a desnutrição. Vieram a minha mente milhares de mães que trocaram o leite materno pela mamadeira diluída em água suja. Outras mães que não vacinam seus filhos, quando não havia ainda cesta básica no Centro de Saúde. Outras mães que limpavam o nariz de todos os seus filhos com o mesmo pano, ou pegavam seus filhos e os humilhavam quando faziam xixi na cama. E, ainda mais triste, quando o pai chegava em casa bêbado. Ao ouvir o grito de fome e carinho de seus filhos, os venciam mesmo quando eram muito pequenos. Sabe-se, segundo resultados de pesquisas da OMS (Organização Mundial da Saúde), cuja publicação acompanhei em 1994, que as crianças maltratadas antes de um ano de idade têm uma tendência significativa para violência, e com frequência fazem crimes antes dos 25 anos.
A Igreja, que somos todos nós, que devíamos fazer?
Tive a seguridade de seguir a metodologia de Jesus: organizara as pessoas em pequenas comunidades; identificar líderes, famílias com grávidas e crianças menores de seis anos. Os líderes que se dispusessem a trabalhar voluntariamente nessa missão de salvar vidas, seriam capacitados, no espírito da fé e vida, e preparados técnica e cientificamente, em ações básicas de saúde, nutrição, educação e cidadania. Seriam acompanhados em seu trabalho para que não se desanimassem. Teriam a missão de compartilhar com as famílias a solidariedade fraterna, o amor, os conhecimentos sobre os cuidados com as grávidas e as crianças, para que estes sejam saudáveis e felizes. Assim como Jesus ordenou que considerassem se todos estavam saciados, tínhamos que implantar um sistema de informações, com alguns indicadores de fácil compressão, inclusive para líderes analfabetos ou de baixa escolaridade. E vi diante de mim muitos gestos de sabedoria e amor apreendidos com o povo.
Senti que ali estava a metodologia comunitária, pois podia se desenvolver em grande escala pelas dioceses, paróquias e comunidades. Não somente para salvar vidas de crianças, mas também para construir um mundo mais justo e fraterno. Seria a missão do “Bom Pastor”, que estão atentos a todas as ovelhas, mas dando prioridade àquelas que mais necessitam. Os pobres e os excluídos.
Naquela maravilhosa noite, desenhei no papel uma comunidade pobre, onde identifique famílias com grávidas e filhos menores de seis anos e lideres comunitários, tanto católicos como de outras confissões e culturas, para levar adiante ações de maneira ecumênica, pois Jesus veio par que “todos tenham Vida e Vida em abundância” (João 10,10). Isto é o que precisa ser feito aqui no Haiti: fazer um mapa das comunidades pobres, identificar as crianças menores de 6 anos e suas famílias e lideres comunitários que desejam trabalhar voluntariamente.
Desde a primeira experiência, a Pastoral da Criança cultivou a metodologia de Jesus, que é aplicada em grande escala. No Brasil, em mais de 40 mil comunidades, de 7.000 paróquias de todas as 272 diocese e prelazias. Está se estendendo a 20 países. Estes são, na América Latina e no Caribe: Argentina, Bolívia, Colômbia, Paraguai, Uruguai, Peru, Venezuela, Guatemala, Panamá, República Dominicana, Haiti, Honduras, Costa Rica e México; na África: Angola, Guiné-Bissau, Guiné Conakry e Moçambique, e na Ásia: Filipinas e Timor Leste.
Para organizar melhor e compartilhar as informações e a solidariedade fraterna entre as mães e famílias vizinhas, as ações se baseiam em três estratégias de educação e comunicação: individual, de grupo e de massas. A Pastoral da Criança utiliza simultaneamente as três formas de comunicação para reforçar a mensagem, motivar e promover mudanças de conduta, fortalecendo as famílias com informações sobre como cuidar dos filhos, promovendo a solidariedade fraterna.
A educação e comunicação individual se fazem através da “Visita Domiciliar Mensal nas famílias” com grávidas e filhos. Os líderes acompanham as famílias vizinhas nas comunidades mais pobres, nas áreas urbanas e rurais, nas aldeias indígenas e nos quilombos, e nas áreas ribeirinhas do Amazonas. Atravessam rios e mares, sobem e descem montes de encostas íngremes, caminham léguas, para ouvir os clamores das mães e famílias, para educar e fortalecer a paz, a fé e os conhecimentos. Trocam ideias sobre saúde e educação das crianças e das grávidas; ensinam e aprendem.
Com muita confiança e ternura, fortalecem o tecido social das comunidade, o que leva a inclusão social.
Motivados pela Campanha Mundial patrocinadas pela ONU (Organização das Nações Unidas), em 1999, com o tema “Uma vida sem violência é um direito nosso”, a Pastoral da Criança incorporou uma ação permanente de prevenção da violência com o lema “A Paz começa em casa”. Utilizou como uma das estratégias de comunicação a distribuição de seis milhões de folhetos com “10 Mandamentos para alcançar a paz na família”, debatíamos nas comunidades e nas escolas, do norte ao sul do país.
As visitas, entre tantas outras ações, servem para promover a amamentação materna, uma escola de dialogo e compartilhar, principalmente quando se dá como alimento exclusivo até os seis meses e se continua dando como alimento preferencial além do um ano, inclusive além dos dois anos, complementarmente com outros alimentos saudáveis. A sucção adapta os músculos e ossos para uma boa dicção, uma melhor respiração e uma arcada dentária mais saudável. O carinho da mãe acariciando a cabeça do bebe melhora a conexão dos neurônios. A psicomotricidade da criança que mama no peito é mais avançada. Tanto é assim que se senta, anda e fala mais rápido, aprende melhor na escola. É fator essencial para o desenvolvimento afetivo e proteção da saúde dos bebês, para toda a vida. A solidariedade desponta, promovida pelas horas de contato direto com a mãe. Durante a visita domiciliar, a educação das mulheres e de seus familiares eleva a autoestima, estimula os cuidados pessoais e os cuidados com as crianças. Com esta educação das famílias se promove a inclusão social.
A educação e a comunicação grupal têm lugar cada em cada mês em milhares de comunidades. Esse é o Dia da Celebração da Vida. Momento dedicado ao fortalecimento da fé e da amizade entre famílias. Além do controle nutricional, estão os brinquedos e as brincadeiras com as crianças e a orientação sobre a cidadania. Neste dia as mães compartilham práticas de aproveitamento adequado de alimentos da região de baixo custo e alto valor nutritivo. As frutas, folhas verdes, sementes e talos, que muitas vezes não são valorizados pelas famílias.
Outra oportunidade de formação de grupo é a Reunião Mensal de Reflexão e Evolução dos líderes da comunidade. O objetivo principal desta reunião é discutir e estabelecer soluções para os problemas encontrados.
Essas ações integram o sistema de informação da Pastoral da Criança para poder acompanhar os esforços realizados e seus resultados através de Indicadores. A desnutrição foi controlada. De mais de 50% de desnutridos no começo, hoje está em 3,1%. A mortalidade infantil foi drasticamente reduzida e hoje está em 13 mortos por mil nascidos vivos nas comunidades com Pastoral da Criança. O índice nacional é 2,33, mas se sabe que as mortes em comunidades pobres, onde estão a Pastoral da Criança, é maior que é na média geral. Em 1982, a mortalidade infantil no Brasil foi 82,8 por mil nascidos vivos. Estes resultados têm servido de base para conquistar entidades, como o Ministério da Saúde, Unicef, Banco HSBC, e outras empresas. Elas nos apoiam nas capacitações e em todas as atividades básicas de saúde, nutrição, educação e cidadania. O custo criança/mês é de menos de US$ 1.
Em relação à educação e à comunicação de massas apresentará três experiências concretas de como a comunicação é um instrumento de defesa dos direitos da infância.
Materiais impressos
O material impresso foi concebido especificamente para ajudar a formação do líder da Pastoral da Criança. Os instrutores e os multiplicadores servem como ferramenta de trabalho na tarefa de guiar as famílias e comunidades sobre questões de saúde, nutrição, educação e cidadania. Além do Guia da Pastoral da Criança, se colocou em marcha publicações como o Manual do Facilitador, Brinquedos e Jogos, Comida e as Hortas Familiares, alfabetização de jovens e adultos e mobilização social.
O jornal da Pastoral da Criança, com tiragem mensal de cerca de 280 mil — ou seja 3 milhões e 300 mil exemplares por ano — chega a todos os líderes da Pastoral da Criança. É uma ferramenta para a formação continua.
O Boletim Dicas abarca questões relacionadas com a saúde e a educação para cidadania. Este especialmente concebido para os coordenadores e capacitadores da Pastoral da Criança. Cada publicação chega a 7.000 coordenadores.
Para ajudar na vigilância das mulheres grávidas, a Pastoral da Criança criou os laços de amor, cartões com conselhos sobre a gravidez e um partos saudável.
Outros materiais impressos de grande impacto social é o folheto com os 10 mandamentos para a Paz na Família, 12 milhões de folhetos foram distribuídos nos últimos anos.
Além desses materiais impressos, se envia para as comunidades da Pastoral da Criança material para o trabalho de pesagem das crianças, objetos como balanças e também colheres de medir para a reidratarão oral e sacos de brinquedos para as crianças brincarem no dia da celebração da vida.
Material de som e vídeo
Outra área em que a Pastoral da Criança produz materiais é de som e a produção de filmes educativos. O Show ao vivo da Rádio da Vida, produzido e gravado no estúdio da Pastoral da Criança, chega a milhões de ouvintes em todo Brasil. Com os temas de saúde, de educação na primeira infância e a transformação social, o programa de rádio Viva a Vida se transmite semanalmente 3.740 vezes. Estamos “no ar”, de 2.310 horas semanais em todo Brasil. Além disso, o Programa Viva a Vida também se executa em vários tipos de sistemas de som de CD e aparados nas reuniões de grupo.
A Pastoral da Criança também produz filmes educativos para melhorar e dar conhecimento de seu trabalho nas bases. Atualmente há 12 títulos produzidos que sem ocupam na prevenção da violência contra as crianças, comida saudável, na gravidez, e na participação dos Conselhos Municipais de Saúde, na preservação da AIDS e outros.
Campanhas
A Pastoral da Infância realiza e colabora em várias campanhas para melhorar a qualidade de vida das mulheres grávidas, famílias e crianças. Estes são alguns exemplos:
a. Campanhas de sais de reidratação oral
b. Campanha de Certidão de Nascimento: a falta de informação, a distância dos escritórios e a burocracia fazem com que as pessoas fiquem sem uma certidão de nascimento. A mobilização nacional para o registro civil de nascimento, que une o Estado brasileiro e a sociedade, [busca] garantir a cada cidadão de pleno direito o nome e os direitos.
c. Campanha para promover o aleitamento materno: o leite materno é um alimento perfeito que Deus colocou à disposição nos primeiros anos de vida. Permanentemente, a Pastoral da Criança promove o aleitamento materno exclusivo até os seis meses e, em seguida, continuar, com outros alimentos. Isso protege contra doenças, desenvolve melhor e fortalece a criança.
d. Campanha de prevenção da tuberculose, pneumonia e hanseníase: as três doenças continuam a afetar muitas crianças e adultos em nosso país. A Pastoral da Criança prepara materiais específicos de comunicação para educar o público sobre sintomas, tratamento e meios de prevenção destas doenças.
e. Campanha de Saneamento: o acesso à água potável e o tratamento de águas residuais contribuem para a redução da mortalidade infantil. A Pastoral da Criança, em colaboração com outros organismos, mobiliza a comunidade para a demanda por tais serviços a governos locais e usa os meios ao seu dispor para divulgar informações relacionadas ao saneamento.
f. Campanha de HIV/Aids e Sífilis: o teste do HIV/Aids e sífilis durante o pré-natal permite a redução de 25% para 1% do risco de transmissão para o bebê. A Pastoral da Criança apoia a campanha nacional para o diagnóstico precoce destas doenças.
g. Campanha para a Prevenção da morte súbita de bebês “Dormir de barriga para cima é mais seguro”: Com a finalidade de alertar sobre os riscos e evitar até 70% das mortes súbitas na infância, a Pastoral da Criança lançou esta grande campanha dirigida às famílias para que coloquem seus bebês para dormir de barriga para cima.
h. Campanha de Prevenção do Abuso Infantil: Com esta campanha, a Pastoral da Criança esclarece as famílias e a sociedade sobre a importância da prevenção da violência, espancamentos e abuso sexual. Esta campanha inclui a distribuição de folheto com os dez mandamentos para a paz na família, como um incentivo para manter as crianças em uma atmosfera de paz e harmonia.
i. Campanha - 20 de novembro, dia de oração e de ação para as crianças: A Pastoral da Criança participa dos esforços globais para a assistência integral e proteção a crianças e adolescentes, em colaboração com a Rede Mundial de Religiões para a Infância (GNRC).
Em dezembro de 2009, completei 50 anos como médica e, antes de 2002, confesso que nunca tinha ouvido falar em qualquer programa da Unicef ou da Organização Mundial de Saúde (OMS), ou de outra agência da Organização das Nações Unidas (ONU), que estimulasse a espiritualidade como um componente do desenvolvimento pessoal. Como um dos membros da delegação do Brasil na Assembleia das Nações Unidas em 2002, que reuniu 186 países, em favor da infância, tive a satisfação de ouvir a definição final sobre o desenvolvimento da criança, que inclui o seu “desenvolvimento físico, social, mental, espiritual e cognitivo”. Este foi um avanço, e vem ao encontro do processo de formação e comunicação que fazemos na Pastoral da Criança. Neste processo, vê-se a pessoa de maneira completa e integrada em sua relação pessoal com o próximo, com o ambiente e com Deus.
Estou convencida de que a solução da maioria dos problemas sociais está relacionada com a redução urgente das desigualdades sociais, com a eliminação da corrupção, a promoção da justiça social, o acesso à saúde e à educação de qualidade, ajuda mútua financeira e técnica entre as nações, para a preservação e restauração do meio ambiente. Como destaca o recente documento do papa Bento 16, “Caritas in veritate” (Caridade na verdade), “a natureza é um dom de Deus, e precisa ser usada com responsabilidade.” O mundo está despertando para os sinais do aquecimento global, que se manifesta nos desastres naturais, mais intensos e frequentes. A grande crise econômica demonstrou a inter-relação entre os países.
Para não sucumbir, exige-se uma solidariedade entre as nações. É a solidariedade e a fraternidade aquilo de que o mundo precisa mais para sobreviver e encontrar o caminho da paz.
Final
Desde a sua fundação, a Pastoral da Criança investe na formação dos voluntários e no acompanhamento de crianças e mulheres grávidas, na família e na comunidade. Atualmente, existem 1.985.347 crianças, 108.342 mulheres grávidas de 1.553.717 famílias. Sua metodologia comunitária e seus resultados, assim como sua participação na promoção de políticas públicas com a presença em Conselhos de Saúde, Direitos da Criança e do Adolescente e em outros conselhos levaram a mudanças profundas no país, melhorando os indicadores sociais e econômicos. Os resultados do trabalho voluntário, com a mística do amor a Deus e ao próximo, em linha com nossa mãe terra, que a todos deve alimentar, nossos irmãos, os frutos e as flores, nossos rios, lagos, mares, florestas e animais. Tudo isso nos mostra como a sociedade organizada pode ser protagonista de sua transformação. Neste espírito, ao fortalecer os laços que ligam a comunidade, podemos encontrar as soluções para os graves problemas sociais que afetam as famílias pobres.
Como os pássaros, que cuidam de seus filhos ao fazer um ninho no alto das árvores e nas montanhas, longe de predadores, ameaças e perigos, e mais perto de Deus, deveríamos cuidar de nossos filhos como um bem sagrado, promover o respeito a seus direitos e protegê-los".
Muito Obrigada!
Que Deus esteja convosco!
Dra. Zilda Arns Neumann
Médica pediatra e especialista em Saúde Pública
Fundadora e Coordenadora da Pastoral da Criança Internacional
Coordenadora Nacional da Pastoral da Pessoa Idosa
FOTO: Logan Abassi/ EFE
quarta-feira, 6 de janeiro de 2010
Pitú, pipa e revólver 38
Pitú (sic), pipa e revólver 38. Minha primeira praia de 2010 teve isso. Hã? Hein? Como assim? Eram os meus vizinhos de guarda sol. Ou melhor, meus vizinhos de coqueiro, em Boa Viagem. Mais animados que eles só os pombos na areia. Enquanto eu lia O Solista sob o sol-mais-ou-menos-do-dia-dois-do-ano-vintedez, o casal que chegou de bicicleta e sentou ao meu lado para curtir democraticamente a mesma sombra da árvore iniciava uma conversa, digamos, tensa. Nesse dia, confesso, senti medo da minha mania de bisbilhotar os anônimos, os que eu não conheço. Mas eles me deram a deixa: revólver. Foi o que escutei (ainda bem que não vi). De pronto, removi os headphones (usados para me abstrair mais no Solista). Ainda pensei que era o comentário de um filme, do programa de Cardinot, da manchete de um jornal sensacionalista. Mas não. Era da arma dele, do rapaz, que estavam falando. Um revólver calibre 38 que, segundo ele, estava na mala de algum carro. Pensei em me picar dali, mas a curiosidade, como diz a minha mãe, mata um. Corri o risco de testemunhar coisa pior. Nesse momento, não teve Solista nem ipod que me distraísse mais. Enquanto as "lapada" de Pitú (sic) iam goela abaixo neles, eu espiava por trás do coqueiro, a um metro de distância. O rapaz impressionava a moça contando que a arma saiu de "graça". O que quis dizer? Não sei. Talvez que ganhou numa rifa, que trocou por um ventilador, que pagou uma pechincha no troca-troca, que roubou de um policial. Imaginar isso e o que ele faria com o revólver foi suficiente para eu me picar dali. Mas, antes que eu levantasse da cadeira derrubada de nylon, uma reviravolta. A moça aponta para o céu. Era uma pipa. Então o casal, que a essa altura derrubou quase um litro de Pitú, passou a falar de papagaio. Discutiam feito criança se a pipa vendida pelo ambulante era uma cobra ou dragão (diferença que bebum de cachaça não faz, né?). Passei a achar a cena leve. Divertida. Poética. Filosófica até (perdoem a pretensão de antemão). Beliscando a mortadela que ofereceu gentilmente à moça para acompanhar a bebida, o rapaz lembrou que fazia papagaio para vender, quando menino; que queria saber se o ambulante ganhava dinheiro com isso ou fazia "ôia por fora"; que era "ninja demais" nas armações; que tinha o sonho de fazer a "maior pipa do mundo"; que queria saber quem inventou o artefato; que nunca mais tinha visto um voando em Brasília Teimosa (onde ele parecia morar); que sentia "falta da molecagem na rua" e tava "cheio dessa vida de viração". O casal, penso eu, não percebeu a minha indiscrição. Peço desculpa por usar a sua vida privada aqui. Mas é que trocar pipa por revólver tem a ver comigo também. Tem a ver com como a gente tira o céu dos sonhos de muitos meninos.
Ps: fiz a foto por trás do coqueiro. Restava menos da metade da garrafa de Pitú.
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segunda-feira, 4 de janeiro de 2010
Do canavial à universidade (parte 3 ou do canavial ao palácio)
O Palácio do Campo das Princesas, sede do governo do estado, sempre esteve na mente do ex-cortador de cana de açúcar, Jonas Lopes da Silva, 24 anos. Ele conhecia o prédio histórico nos livros e de longe, na Praça da República.
Com os amigos imaginários (pernambucanos ilustres como Josué de Castro e Joaquim Nabuco), Jonas conversava sobre o que significava justiça e dignidade ali dentro. Até que ontem, o ex-trabalhador rural que estudou sempre na rede pública e foi aprovado no vestibular de medicina da UPE deste ano, pisou no tapete vermelho do palácio. Foi recebido pelo governador Eduardo Campos. Ganhou homenagens ao lado da mãe, Edileuza Lopes, de 50 anos, também trabalhadora rural do município de Joaquim Nabuco, na Zona da Mata, a 120 quilômetros do Recife.
Diante do governador, da secretária de Ciência e Tecnologia Luciana Santos, do reitor da UPE, Carlos Calado, do prefeito de Joaquim Nabuco, João Carvalho, e outras "autoridades", Jonas recontou a sua história, publicada no Diario do último dia 23. O rapaz deu aula. Para começo de conversa, reproduziu a frase de outro "amigo" que inspirou o seu feito: "o menino é o pai do homem" (Machado de Assis, em Conto de escola). Quando menino, Jonas cortou cana. Sentiu o dissabor do trabalho duro. Chegou a parar de estudar por dois anos. A mãe lhe cobrou ser homem na vida por meio dos livros. "Se ele não queria estudar, colocava ele no campo, para saber o que era que eu sofria", disse a mãe, que desde os 15 anos colheu cana.
Desde que a sua história ficou conhecida, Jonas vem recebendo apoio. De "futuros colegas" e solidários da luta do rapaz. Ontem, ele ganhou da Livraria Jaqueira dois, dos três volumes do Prometheus - Atlas de anatomia. Também recebeu um notebook do prefeito João Carvalho. Pelos corredores do palácio, foi chamado de "futuro doutor" e já agendou consultas. Jonas quer ser cardiologista. O rapaz aguarda ainda o resultado do concurso para agente do IBGE, no dia 20 de janeiro. Se aprovado, diz ele, vai usar a remuneração para reformar a casa da famíliae comprar mais livros. As aulas de medicina terão início no segundo semestre de 2010. "Tem o Harisson, que eu quero comprar em inglês", sonha Jonas com os dois volumes do Harisson - Medicina interna (que custam R$ 500).
"É muito importante esse testemunho de valorização da educação, de que não existem barreiras insuperáveis para se buscar os objetivos. As dificuldades são muitas, mas ele mostrou que é possível vencê-las. Sua vida serve de exemplo para muitos outros jovens", defendeu o governador. Eduardo Campos destacou ainda que, como Jonas, outras crianças e jovens dão exemplos no interior do estado. "Lembro do menino João Lucas, de Quixaba, no Sertão, que conquistou três medalhas de ouro seguidas na Olimpíada Brasileira de Matemática das Escolas Públicas", comentou. "Fica evidente que as nossas universidades têm que ir em direção do interior", afirmou.
(Este escrevi no dia 30 de dezembro de 2009 e foi publicado no dia seguinte, no Diario de Pernambuco).
O ex-cortador de cana foi recebido como um ilustre convidado pelo governador Eduardo Campos. Jonas ganhou de presente a camisa da universidade . Foto: Edvaldo Rodrigues/DP/D.A/Press |
Diante do governador, da secretária de Ciência e Tecnologia Luciana Santos, do reitor da UPE, Carlos Calado, do prefeito de Joaquim Nabuco, João Carvalho, e outras "autoridades", Jonas recontou a sua história, publicada no Diario do último dia 23. O rapaz deu aula. Para começo de conversa, reproduziu a frase de outro "amigo" que inspirou o seu feito: "o menino é o pai do homem" (Machado de Assis, em Conto de escola). Quando menino, Jonas cortou cana. Sentiu o dissabor do trabalho duro. Chegou a parar de estudar por dois anos. A mãe lhe cobrou ser homem na vida por meio dos livros. "Se ele não queria estudar, colocava ele no campo, para saber o que era que eu sofria", disse a mãe, que desde os 15 anos colheu cana.
Desde que a sua história ficou conhecida, Jonas vem recebendo apoio. De "futuros colegas" e solidários da luta do rapaz. Ontem, ele ganhou da Livraria Jaqueira dois, dos três volumes do Prometheus - Atlas de anatomia. Também recebeu um notebook do prefeito João Carvalho. Pelos corredores do palácio, foi chamado de "futuro doutor" e já agendou consultas. Jonas quer ser cardiologista. O rapaz aguarda ainda o resultado do concurso para agente do IBGE, no dia 20 de janeiro. Se aprovado, diz ele, vai usar a remuneração para reformar a casa da famíliae comprar mais livros. As aulas de medicina terão início no segundo semestre de 2010. "Tem o Harisson, que eu quero comprar em inglês", sonha Jonas com os dois volumes do Harisson - Medicina interna (que custam R$ 500).
"É muito importante esse testemunho de valorização da educação, de que não existem barreiras insuperáveis para se buscar os objetivos. As dificuldades são muitas, mas ele mostrou que é possível vencê-las. Sua vida serve de exemplo para muitos outros jovens", defendeu o governador. Eduardo Campos destacou ainda que, como Jonas, outras crianças e jovens dão exemplos no interior do estado. "Lembro do menino João Lucas, de Quixaba, no Sertão, que conquistou três medalhas de ouro seguidas na Olimpíada Brasileira de Matemática das Escolas Públicas", comentou. "Fica evidente que as nossas universidades têm que ir em direção do interior", afirmou.
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Do canavial à universidade (parte 2)
Acostumado com o silêncio das bibliotecas e salas de estudo, o cortador de cana que foi aprovado este ano no vestibular de medicina da UPE, Jonas Lopes da Silva, viveu um dia agitado na cidade onde se criou, Joaquim Nabuco, na Zona da Mata, a 120 quilômetros do Recife. Vizinhos, amigos e parentes queriam detalhes da história do rapaz, que foi publicada no Diario de ontem. Se o caminho de Jonas coubesse em duas linhas de jornal, seria assim: iniciou e concluiu o ensino na rede pública, migrou para o Recife atrás dos sonhos, conseguiu bolsa em cursos, mudou-se para a Casa do Estudante e conquistou uma vaga no curso mais concorrido da UPE, depois de quatro anos de tentativas.
Além de ter o momento de "fama" em Joaquim Nabuco, Jonas ganhou dois volumes dos livros que citou na matéria como fundamentais para iniciar os estudos. Um empresário dono de uma livraria no Recife ofereceu dois dos três volumes do Prometheus, Atlas de Anatomia. Cada um custa, em média, R$ 230. "Vixe, meu Deus, ainda nem acredito no que aconteceu e vem mais uma dessa?", comentou Jonas. O rapaz quer estudar antes do curso começar. "Me disseram para eu já ir folheando os livros", disse. Jonas passou na turma de 2ª entrada, cujas aulas vão iniciar somente no segundo semestre de 2010. "O outro que eu preciso ter é o Harrison - Medicina Interna. Se Deus quiser, eu vou passar no concurso do IBGE e vou investir", conta o rapaz. No início do próximo ano, Jonas poderá contar a sua história no Palácio das Princesas, onde será recebido pelo governador Eduardo Campos.
Trabalhando de pedreiro na reforma de uma escola em Caruaru, José Lopes foi a Joaquim Nabuco, para encontrar o filho. "Nem me lembro quando senti uma felicidade igual. Nunca tive na família alguém que chegou na universidade", contou o pai, orgulhoso de dar tanta "satisfação" do filho nas ruas da cidade.
Social - Jonas e os pais derrubaram cana em Joaquim Nabuco. O rapaz, de 24 anos, cortou dos sete aos 15. Hoje, a mão de obra do setor tem ficado sob os olhos da fiscalização e da Justiça.A atuação conjunta com algumas empresas dá importantes passos para humanizar o trabalho. Em julho deste ano, o Ministério Público do Trabalho, por meio da Procuradoria Regional do Trabalho da 6ª Região, firmou um termo de compromisso e ajustamento de conduta com 22 usinas. Entre as obrigações previstas aos empregadores estão garantir aos trabalhadores o piso salarial mínimo ou o salário mínimo; transporte; exames médicos (admissional e periódico por exemplo); oferecer ferramentas de trabalho e equipamentos de proteção individual (como facões com bainhas e luvas), além de área com instalações sanitárias e local para refeições nos casos de trabalhadores alojados.
(Este escrevi no dia da publicação da primeira matéria, 23 de dezembro de 2009 - postada logo abaixo - e publicado no dia seguinte, no Diario de Pernambuco).
Além de ter o momento de "fama" em Joaquim Nabuco, Jonas ganhou dois volumes dos livros que citou na matéria como fundamentais para iniciar os estudos. Um empresário dono de uma livraria no Recife ofereceu dois dos três volumes do Prometheus, Atlas de Anatomia. Cada um custa, em média, R$ 230. "Vixe, meu Deus, ainda nem acredito no que aconteceu e vem mais uma dessa?", comentou Jonas. O rapaz quer estudar antes do curso começar. "Me disseram para eu já ir folheando os livros", disse. Jonas passou na turma de 2ª entrada, cujas aulas vão iniciar somente no segundo semestre de 2010. "O outro que eu preciso ter é o Harrison - Medicina Interna. Se Deus quiser, eu vou passar no concurso do IBGE e vou investir", conta o rapaz. No início do próximo ano, Jonas poderá contar a sua história no Palácio das Princesas, onde será recebido pelo governador Eduardo Campos.
Trabalhando de pedreiro na reforma de uma escola em Caruaru, José Lopes foi a Joaquim Nabuco, para encontrar o filho. "Nem me lembro quando senti uma felicidade igual. Nunca tive na família alguém que chegou na universidade", contou o pai, orgulhoso de dar tanta "satisfação" do filho nas ruas da cidade.
Social - Jonas e os pais derrubaram cana em Joaquim Nabuco. O rapaz, de 24 anos, cortou dos sete aos 15. Hoje, a mão de obra do setor tem ficado sob os olhos da fiscalização e da Justiça.A atuação conjunta com algumas empresas dá importantes passos para humanizar o trabalho. Em julho deste ano, o Ministério Público do Trabalho, por meio da Procuradoria Regional do Trabalho da 6ª Região, firmou um termo de compromisso e ajustamento de conduta com 22 usinas. Entre as obrigações previstas aos empregadores estão garantir aos trabalhadores o piso salarial mínimo ou o salário mínimo; transporte; exames médicos (admissional e periódico por exemplo); oferecer ferramentas de trabalho e equipamentos de proteção individual (como facões com bainhas e luvas), além de área com instalações sanitárias e local para refeições nos casos de trabalhadores alojados.
(Este escrevi no dia da publicação da primeira matéria, 23 de dezembro de 2009 - postada logo abaixo - e publicado no dia seguinte, no Diario de Pernambuco).
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sexta-feira, 1 de janeiro de 2010
Do canavial à universidade
Do jeito que a gente aprende no colégio, o solo massapê é aquele fertilíssimo, ideal para plantar cana de açúcar. A gente só não vê nos livros que esse mesmo plantio pode prender, aprisionar o homem à terra, explorando uma mão de obra que, muitas vezes, não vê outro horizonte que não o monte de terra roxa. Uma sina de muitos pernambucanos. Uma história repetida há séculos na Zona da Mata no estado. Mas Jonas Lopes da Silva, de 24 anos, nascido em Palmares e criado em Joaquim Nabuco, abandonou essa geografia de escravidão. Deixou para trás essa herança de desesperança. Foi cortador de cana de açúcar ao lado dos pais até os 15 anos de idade. Hoje, aos 24, colhe uma riqueza de verdade: a aprovação no vestibular de medicina da Universidade de Pernambuco, um dos mais concorridos do estado (são 34,15 candidatos disputando uma vaga).
Jonas iniciou e concluiu a educação na rede pública aos 20 anos de idade. Atrasou dois anos em relação à maioria das crianças porque desistiu de estudar. "Eu era briguento e brincalhão. Também um pouco revoltado", justifica Jonas. Deixou de ir à escola na quinta e sexta série do antigo primeiro grau. Tinha em torno de 12 anos. Nesse tempo, andava ao lado da mãe, pelo canavial. De tanto vê-la derrubar e embolar cana, foi repetir a sina. Trabalhou em condições degradantes, um crime contra os direitos humanos previsto nos artigos 240 e 241 do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA). "O sol era escaldante e minhas costas doíam", lembra Jonas, tocando a cicatriz na mão direita. "Nunca fui obrigado a nada. Mas as coisas eram muito difíceis", lembra. Jonas é o quinto filho de uma prole de sete do pedreiro José Lopes, de 56 anos, e da trabalhadora rural Edileusa Maria, de 50 anos.
Além de Jonas, apenas o caçula da família, Renato, de 20, completou o ensino médio. Outros quatro largaram os estudos para trabalhar. "Minha mãe foi acabada pela cana de açúcar. Foi massacrada pelo destino. Minha avó até hoje se arrepende de ter tirado o sonho dela, de ter tirado ela da escola", conta Jonas. "Então, quando meu pai me disse que se eu não estudasse, eu iria cortar cana, fiquei danado. Daí para frente disparei. Fui aluno laureado no 1º, 2º e 3º ano", orgulha-se o rapaz, que salvou na memória afetiva, da pracinha de Joaquim Nabuco, os nomes dos professores da época. "Tive Alex, de matemática, e três professoras que foram mães. Dona Eulália, de história, dona Risonete, de português, e Elian, de geografia", recorda.
Foram quatro anos de tentativas, até a aprovação na UPE. Na primeira, em 2006, ainda morando em Joaquim Nabuco, levou ponto de corte. "Senti todas as carências do ensino público aí. Pensei em pedir emprego na prefeitura", afirma. Em 2007, recuperou o "prejuízo". Passou em um concurso do IBGE para ser agente do censo. Realizou o trabalho, mudou-se para Jaboatão (onde mora a irmã mais velha, Márcia) e pagou um curso pré-vestibular com o dinheiro que guardou. "Eu escutava falar muito de vestibular no rádio. Aí, já sabendo que para a minha condição social passar em medicina era difícil, decidi investir nesse curso, em um colégio famoso da capital", recorda o jovem, criado no bairro de São Miguel, que ele chama de "Coque de Joaquim Nabuco". "As pessoas diziam que eu nunca ia passar porque era pobre". Ele não acreditava nisso, mesmo reprovado pela segunda vez, no vestibular de 2007. "Aprendi a lutar com a dor da minha mãe e com a sabedoria do meu pai. São dois filósofos, apesar da dureza. Sempre ouvi deles que eu deveria me dar bem com Deus e o diabo", reproduz.
Sentindo-se cada dia mais desafiado, Jonas procurou em 2008 um curso de matérias isoladas. "O nível de exigência do aluno era maior. Mas era o que eu precisava. Conheci o professor Vieira Filho, fiz teste para uma bolsa 100%, mas só consegui desconto. Eu pagava R$ 190, por cinco disciplinas, ainda com o que sobrou do IBGE", conta o rapaz, que nesse tempo mal se mantinha acordado nas aulas e nos ônibus (quatro por dia). "Sofri em silêncio", desabafa. Jonas ficou na lista de remanejamento, por 13 pontos. Bastaria queduas pessoas desistissem, o que não aconteceu.
Além de aprender biologia, física e química, Jonas teve que aprender a brincar. A exemplo de um dos seus "mestres", o poeta Fernando Pessoa, criou heterônimos. Personagens dele mesmo. Pequenas histórias autobiográficas. O mais conhecido é João, um menino que adora tirar fruta do pé. "Uma vez João me disse para eu não ficar triste. Falou que quando eu passasse, eu ia para casa, comer manga e chupar picolé", brinca Jonas. "Eu fui fazer as provas este ano de mãos dadas com Deus e João", ressalta. Outra coisa: Jonas nunca brinca sozinho. "Converso com os meus mestres, Franz Kafka, Josué de Castro, Machado de Assis, Mozart, Bach e João Cabral de Melo Neto", cita alguns.
Para encurtar os gastos com as passagens de ônibus, as despesas na casa da irmã e o cansaço, Jonas conseguiu uma vaga na Casa de Estudantes de Pernambuco, no mês de abril deste ano. "O acolhimento foi imediato", declara. "Além disso, fui atrás novamente de uma bolsa integral e consegui, através do professor Fernandinho e companhia", fala Jonas, agradecido como se falasse de "deuses". Era tudo ou nada este ano. Foi tudo. Jonas conseguiu a aprovação pelo sistema de cotas (que reserva 20% das vagas para alunos egressos da rede pública), com a pontuação 532,25. E foi também o começo. Jonas já faz planos para comprar os primeiros livros (Prometheus, Atlas de Anatomia e Harrison: Medicina Interna) com o dinheiro de um novo concurso do IBGE. Também já aprendeu no corredor da UPE que "a arte na medicina às vezes cura, de vez em quando alivia, mas sempre consola".
Foto: Fotos: Ricardo Fernandes/DP/D.A Press |
Além de Jonas, apenas o caçula da família, Renato, de 20, completou o ensino médio. Outros quatro largaram os estudos para trabalhar. "Minha mãe foi acabada pela cana de açúcar. Foi massacrada pelo destino. Minha avó até hoje se arrepende de ter tirado o sonho dela, de ter tirado ela da escola", conta Jonas. "Então, quando meu pai me disse que se eu não estudasse, eu iria cortar cana, fiquei danado. Daí para frente disparei. Fui aluno laureado no 1º, 2º e 3º ano", orgulha-se o rapaz, que salvou na memória afetiva, da pracinha de Joaquim Nabuco, os nomes dos professores da época. "Tive Alex, de matemática, e três professoras que foram mães. Dona Eulália, de história, dona Risonete, de português, e Elian, de geografia", recorda.
Foram quatro anos de tentativas, até a aprovação na UPE. Na primeira, em 2006, ainda morando em Joaquim Nabuco, levou ponto de corte. "Senti todas as carências do ensino público aí. Pensei em pedir emprego na prefeitura", afirma. Em 2007, recuperou o "prejuízo". Passou em um concurso do IBGE para ser agente do censo. Realizou o trabalho, mudou-se para Jaboatão (onde mora a irmã mais velha, Márcia) e pagou um curso pré-vestibular com o dinheiro que guardou. "Eu escutava falar muito de vestibular no rádio. Aí, já sabendo que para a minha condição social passar em medicina era difícil, decidi investir nesse curso, em um colégio famoso da capital", recorda o jovem, criado no bairro de São Miguel, que ele chama de "Coque de Joaquim Nabuco". "As pessoas diziam que eu nunca ia passar porque era pobre". Ele não acreditava nisso, mesmo reprovado pela segunda vez, no vestibular de 2007. "Aprendi a lutar com a dor da minha mãe e com a sabedoria do meu pai. São dois filósofos, apesar da dureza. Sempre ouvi deles que eu deveria me dar bem com Deus e o diabo", reproduz.
Sentindo-se cada dia mais desafiado, Jonas procurou em 2008 um curso de matérias isoladas. "O nível de exigência do aluno era maior. Mas era o que eu precisava. Conheci o professor Vieira Filho, fiz teste para uma bolsa 100%, mas só consegui desconto. Eu pagava R$ 190, por cinco disciplinas, ainda com o que sobrou do IBGE", conta o rapaz, que nesse tempo mal se mantinha acordado nas aulas e nos ônibus (quatro por dia). "Sofri em silêncio", desabafa. Jonas ficou na lista de remanejamento, por 13 pontos. Bastaria queduas pessoas desistissem, o que não aconteceu.
Além de aprender biologia, física e química, Jonas teve que aprender a brincar. A exemplo de um dos seus "mestres", o poeta Fernando Pessoa, criou heterônimos. Personagens dele mesmo. Pequenas histórias autobiográficas. O mais conhecido é João, um menino que adora tirar fruta do pé. "Uma vez João me disse para eu não ficar triste. Falou que quando eu passasse, eu ia para casa, comer manga e chupar picolé", brinca Jonas. "Eu fui fazer as provas este ano de mãos dadas com Deus e João", ressalta. Outra coisa: Jonas nunca brinca sozinho. "Converso com os meus mestres, Franz Kafka, Josué de Castro, Machado de Assis, Mozart, Bach e João Cabral de Melo Neto", cita alguns.
Para encurtar os gastos com as passagens de ônibus, as despesas na casa da irmã e o cansaço, Jonas conseguiu uma vaga na Casa de Estudantes de Pernambuco, no mês de abril deste ano. "O acolhimento foi imediato", declara. "Além disso, fui atrás novamente de uma bolsa integral e consegui, através do professor Fernandinho e companhia", fala Jonas, agradecido como se falasse de "deuses". Era tudo ou nada este ano. Foi tudo. Jonas conseguiu a aprovação pelo sistema de cotas (que reserva 20% das vagas para alunos egressos da rede pública), com a pontuação 532,25. E foi também o começo. Jonas já faz planos para comprar os primeiros livros (Prometheus, Atlas de Anatomia e Harrison: Medicina Interna) com o dinheiro de um novo concurso do IBGE. Também já aprendeu no corredor da UPE que "a arte na medicina às vezes cura, de vez em quando alivia, mas sempre consola".
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