sábado, 16 de janeiro de 2010

A dor em outra dimensão

    Doulè. Foi assim que Franck Seguey escreveu ontem, no bloco de anotação da reportagem, o que significa dor, na língua oficial predominante do Haiti, o crioulo. Mas não há tradução para o que sentem ele e a esposa, Michaelle Desrosiers, únicos haitianos no Recife. O casal de professores universitários está na capital há quase dois anos. "Fiquei aqui 22 meses na expectativa de receber notícia ruim. Mas não imaginei que chegasse a essa dimensão", desabafou Franck, durante entrevista na UFPE, onde ele e a esposa concluíram, neste mês, o mestrado em Serviço Social. Eles foram salvos. Planejavam chegar no Haiti na última terça-feira, dia 12, dia do terremoto. Porque o voo não tinha assentos à venda nessa data na internet, compraram as passagens para o dia 14. Foram salvos. Mas não sabem como vão sobreviver na dor do Haiti.
    A volta ao país natal foi desejada pelo casal antes mesmo da chegada no Brasil: logo após a conclusão do mestrado. Mas as passagens agora estão guardadas na mochila de nylon gasta de Franck, que até 2007 foi professor do curso de Sociologia da Faculdade Estadual de Ciências Humanas do Haiti, em Porto Príncipe. Uma nova data está marcada: 8 de fevereiro. "Se eu pudesse, voltaria hoje. Mas não vou levar mais problema ao país e não vou colocar a minha família em risco", reconhece Franck.
    Michaelle está no 5º mês de gestação do segundo filho. A filha, "recifense da gema", diz o haitiano, tem 15 meses de vida. "Lorrene já nasceu lutando com a gente. Ela nasceu prematura", conta. As primeiras notícias de familiares e amigos Franck recebeu justamente quando levava a criança à consulta do neurologista, no Imip.
    Franck e Michaelle têm parentes e amigos na capital haitiana e outras cidades do país caribenho. "Pelo MSN, pedi a uma pessoa que fosse na casa da minha mãe e quatro irmãs, que fica a 10 minutos do Palácio Nacional, sede da presidência, em Porto Príncipe. Então, soube que eles sobreviveram, mas estão sem comida e sem água. Também soube que o pai de Michaelle está vivo", conta o professor, formado em Sociologia e em Educação. Ele e Michaelle recebeiam bolsas de estudos no mestrado no valor de R$ 1,2 mil, por mês, cada.
    Em caráter extraordinário, a reitoria UFPE conseguiu manter mais um mês do benefício. O casal devolveria o apartamento alugado na Cidade Universitária e chegou a doar parte dos pertences. "Agora, a gente vai ver com a faculdade o que pode fazer", diz Franck, protestante da Igreja Adventista, cuja crença é na volta de Jesus à terra. A maioria dos haitianos, 64%, professa a religião católica.

O futuro - "A minha preocupação principal não é quem morreu. São os 13 milhões de haitianos que estão sobrevivendo na miséria", afirma Franck. "Acredito que o Haiti tem que ser reconstruído. Mas não acredito que isso virá da Minustah", observa o professor, cujo tema de mestrado foi Globalização neoliberal e movimentos populares no Haiti. Minustah é a Missão das Nações Unidas pela estabilização no Haiti (Mission des Nations Unies pour la stabilisation en Haïti, em francês), criada em 2004 pelo Conselho de Segurança da ONU. Existem, segundo Franck, nove mil militares e 1,5 mil civis na Minustah. O efetivo do Brasil, que comanda a missão da ONU, tem 1,3 mil soldados. "Por que não levam mais médicos, professores e engenheiros?", questiona.
    "São quatro anos de ocupação do Haiti e não se evitou desgraças", critica Franck, citando casos de assassinato, estrupos de mulheres e sequestros de haitianos. "A Minustah teve chance de reconstruir o Haiti no furacão de 2008, mas não fez", avalia. O Haiti viveu dois períodos de ditadura militar (de 1957 a 1990 e de 1991 a 1994). "A gente não teria capacidade de impedir o terremoto, mas poderia diminuir as consequências da tragédia, se as autoridades quisessem isso. Vou voltar com a minha família para aventurar um futuro no meu próprio país", diz,

Matéria publicada no Diario de Pernambuco, dia 16 de janeiro de 2010, página A21.
Foto: Renato Spencer/ especial para o Diario de Pernambuco.

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