quarta-feira, 20 de agosto de 2008

O eremita moderno



Mendigo para uns. Profeta para outros. Louco para a maioria. Misterioso para todos. Esta é a história de Zé Carlos, um morador de rua que faz das movimentadas vias de Boa Viagem o seu deserto particular.

Em vez do manto em cambraia cobrindo todo o corpo, a calça jeans, o casaco em nylon com capuz e o tênis. No lugar da barba crescida, escorrida queixo abaixo, os pêlos aparados. Ao invés do cajado e da lanterna nas mãos, o aceno de bom dia, boa tarde e boa noite. Zé Carlos é um eremita. Mas um eremita moderno. Que não usa manto, não tem barba grande, cajado nem lanterna, como o da religião e o da carta do tarô. Que não se isolou da gente. Que não nega a palavra. Ao contrário. Mesmo no silêncio profundo, condição de um eremita, é capaz de falar aos outros pelo olhar. Zé Carlos compra pipoca, biscoito, bombom, cerveja, como qualquer um da gente. Conta de poder e política no Brasil - ao jeito dele, mas conta. Descansa da rotina não num deserto ou esconderijo, mas onde qualquer um pode vê-lo, na esquina da Rua Padre Carapuceiro com a Rua dos Navegantes, em Boa Viagem. Caminha diariamente na Avenida Boa Viagem. Contempla a natureza e a gente, como se ainda quisesse tirar conhecimento delas. É um eremita moderno. Sem opinião ou crença formada. Apenas existe na paz.
O eremita tal qual o da religião e o do tarô escolhe viver isolado, afastado da gente. Faz isso para descobrir conhecimento no que está em volta. Mas Zé Carlos - nome que tem em Boa Viagem - não é assim. Até faz sua viagem pelas ruas da vizinhança sozinho, mas não solitário. Vai diária e pontualmente (perto do meio-dia) ao portão de pedestres que faz fronteira entre o Shopping Center Recife e uma ilha de prédios de negócios. Cumprimenta quem passa por ele. A hora do almoço aumenta o vai-e-vem. E bem-aventurado o que receber um suave "bom dia. Como vai? Estava viajando?". Soa quase como um Sermão (moderno) da Montanha: "bem-aventurados os que promovem a paz, porque são chamados de filhos de Deus". A paz, como já mostraram Jesus Cristo, Buda e outros religiosos, está na síntese. Num simples cumprimento de Zé Carlos.
O eremita Zé Carlos não parece sê-lo por penitência, religiosidade, misantropia (aversão ao ser humano) ou apego à natureza, como se diz no tarô. Em verdade, quem o conhece, nem cobra motivo. Na esquina, no fiteiro, no self-service, no calçadão ou na portaria dos prédio vizinhos à esquina onde dorme, ninguém sabe seu nome completo, idade, ascendência, se teve casa, carro, cachorro, emprego. Ninguém sabe, sequer, o tanto de tempo ele vive na rua. É como se todo mundo já admitisse aquele homem ali, sem passado. Guardião do presente. Profeta - como também ficou conhecido na vizinhança - do futuro.
Zé Carlos compra biscoito recheado para dar às crianças que estão no sinal de trânsito. Arranja pipoca para dar aos pombos. Abre mão da quentinha de comida oferecida pelo vizinho do bairro, quando já foi satisfeito com outra doação. Diz que aquele alimento deve servir a quem precisa mais do que ele. O pouco dinheiro que, enventualmente, aparece no bolso na calça jeans é dividido com outros em situação de rua também. Ele, ele mesmo não pede. Ao contrário, ensina a quem convive com ele a não ter pena nem dó. Existe uma espécie de pacto com a comunidade. Ninguém incomoda ninguém. Silêncio e respeito de ambas as partes. Mas, por que Zé Carlos haveria de se incomodar, se tem elegância até para aceitar um dia inteiro com apenas uma sopa na barriga? No tarô, tirar a carta do eremita significa que algo perdido será recuperado, que uma revelação virá. E o que é dar biscoito recheado às crianças no sinal, se não lhes devolver um pouco de infância?
O casaco em nylon preto cobre Zé Carlos à noite. É o manto de proteção. E só, na esquina do bairro nobre. Ele não tem apegos. A trave da placa de trânsito - de sentido proibido - serve de apoio para a cabeça. Somente um papelão separa o corpo dele da calçada de pedras portuguesas bem cuidadas. Mas ele nunca fez queixa a ninguém. Nunca reclamou. O farol alto do carro não o acorda. Ele nem se mexe com o cachorro que se aproxima curioso. Zé Carlos nunca reclamou. Também nunca viveu diferente. E nunca, no caso dele, não é exagero. Porque a rua estica a vida. Acostuma os olhos. Banaliza as coisas. Deixa a gente ordinária.
Mas Zé Carlos não é gente ordinária. Ele resiste, embora faça, para ele mesmo, as mesmas mínimas coisas, todos os dias. Há nove anos, o Diario o conheceu. Em 17 de outubro de 1999, o jornal publicou a reportagem com as "figuras típicas das ruas da cidade", os "exóticos que compõem a paisagem do Recife". Já naquele dia, mais falante que hoje, ele disse que "enquanto a sabedoria não tomar o lugar da pobreza e da maldade, o mundo não vai ter jeito". E proferiu: "Deus não quer que a gente ande com bíblias debaixo do braço ou viva enfurnado em templos. Ele só quer o amor e a paz". No reencontro, na reportagem de agora, ele é o eremita moderno, que vai ganhar a "chave do mundo". No tarô, não existe uma carta ruim. E quando uma carta sai repetida, não é coincidência. Zé Carlos existirá sempre.


O reencontro
por Jaqueline Maia, fotógrafa

Ao ser publicada pela primeira vez em um jornal, uma imagem deve trazer informações capazes de dar veracidade aos fatos narrados no texto da matéria. Após a publicação, a foto vai para o arquivo e ali pode ficar por vários anos, podendo ser reutilizada ou não. Mas quando essa foto é publicada pela segunda vez, ela adquire outro siginificado: resgatar da memória referências, histórias e histórias que estavam guardadas, além de ressaltar a importância da própria fotografia em questão. Quais fotos já foram vistas duas vezes em um mesmo jornal? Poucas, acredite.
Um personagem que volta às páginas de um jornal, pelas mãos da mesma fotógrafa, após nove anos de arquivo, é um acontecimento raro. Por isso, publicou-se, aqui, uma foto antiga e uma nova do mesmo personagem. Para a maioria dos leitores, Zé Carlos passa a existir agora, no momento em que lê a matéria. Para a fotógrafa, o Profeta, pois foi com esse nome que o conheci lá atrás, é uma história (ou estória?) muito bacana para guardar e contar.




terça-feira, 5 de agosto de 2008

De carona na Kombi


Esta é a história de Naná, o motorista voluntário que leva crianças à escola, todos os dias, para fazer valer o direito à educação.

"Bora, bora, bora. Todo mundo se ajeita, coloca a mochila para dentro, porque tá na hora de partir. Alguém ainda não assinou o livro?". Essa reza o autônomo Naná tem todo dia, antes de fazer duas viagens na Kombi, para levar 30 crianças à escola pública municipal Nilo Pereira. Sai do lendário bairro do Poço da Panela, ainda sob o sol frio, em direção à Casa Amarela. O trajeto de dois quilômetros, quando feito a pé, leva meia hora. Isso se não chove, motivo para faltar à aula. Mas, na carona voluntária de Naná, não chega a dez minutos. E o vuco-vuco na Kombi só não é maior por conta disso. O futebol do final de semana, a música da moda, a cena da novela, a prova do dia, tudo distrai os passageiros e o motorista, a caminho da cidadania.

A história da Kombi solidária existe há seis anos. A primeira viagem de todas aconteceu justamente pelo dia das crianças. Foi o jeito que Naná achou de presentear a meninada do Poço da Panela. Começou com cinco alunos. Na manhã seguinte, já havia 12. E uma semana depois, 32. Para agüentar na missão, conta com o apoio da Confraria dos Amigos do Poço, "um grupo de boêmios, moradores ou visitantes do bairro", explica Naná, batizado de Evaldo Gomes de Moura, nascido em 1967 no município de João Alfredo, criado em Camaragibe e morador do Poço há 20 anos. A tal confraria é que passa o caderninho das contribuições. "Um dá R$ 2, outro dá R$ 5, R$ 10". O dinheiro serve para abastecer de gás a Kombi branca 98 e fazer algum reparo essencial.

A Kombi abre às 6h30. Fica parada à espera dos passageiros defronte de dois patrimônios do Poço da Panela (e, por que não, de Pernambuco): a Igreja de Nossa Senhora da Saúde e o bar de seu Vital. O primeiro foi construído no século 19, como promessa feita pelo capitão Henrique Martins, dono de terras no povoado. A graça, atendida, era curar a esposa de uma doença grave. Seu Vital mora desde 1964 no bairro e há 38 anos tem o comércio que nunca mudou de lugar. "A venda-boteco-abrigo emocional de seu Vital é onde uma parte da população recifense se casa e outra parte bebe, celebrando os noivos, os jogos de dominó ou qualquer coisa em movimento", define o jornalista e um dos colaboradores da Kombi, Samarone Lima.

Quem vai na condução tem que assinar o livro de presença. Daiana, Dennys, Júlia, Maria, Romário, Tiago, Túlio.. Até dar 15, número bastante para Naná fazer a primeira viagem. O motorista solidário confere nome por nome. "Ele pede para escrever o nome completo, para ver se a criança tem a letra bonitinha, se tá escrevendo direitinho, se sabe fazer todo", conta a dona-de-casa Sandra Lima, de 45 anos, mãe de Sandrini, de 10, aluna da 4ª série da escola municipal. "Ele motiva mais, cobra e se relaciona direto com a escola. É um controle que ajuda os pais". Mas Sandrini tem a própria explicação para gostar da história: prefere a "bagunça" da Kombi à caminhada de quase dois quilômetros, logo cedo da manhã, atravessando três avenidas bem movimentadas.

Naná não precisa pedir licença para entrar na Nilo Pereira. "Ele é o elo entrea escola e a comunidade. É praticamente a família dessas crianças. Ele sabe de tudo delas e da escola. Sabe quando tem reunião, quando não tem aula, quando o aluno é suspenso. Diminuíram muito as faltas e os atrasos, depois que ele passou a fazer esse trabalho. Pena que ele não tenha o reconhecimento do município. Ah, se todo mundo tivesse um Naná desse, a vida seria outra", comenta a diretora da unidade, Damaris Diniz. A escola tem cerca de 1,1 mil alunos matriculados, em turmas até a 8ª série.

Romário Baltar, de 10 anos, aluno da 4ª série, vez por outra "ganha" um recadinho da direção da escola. "É, eu sou invocado, tiro muita brincadeira. Mas esse ano eu tô melhorando", admite o menino, que foi batizado com esse nome porque nasceu durante a Copa do Mundo de 98, na França (justamente neste ano o atacante Romário foi cortado da Seleção Brasileira). "Quer dizer, foi minha mãe que disse isso, né?". E apontando para o amigo Naná, Romário, o da Kombi, solta outra: "mas eu vim dessa pança aqui também". Se qualquer criança adoece, o destino é o posto de saúde do Poço.

Aprender a dirigir foi uma necessidade para Naná. Começou a trabalhar muito cedo, aos 11 anos de idade, junto com o pai, num supermercado. Chegou a ser gerente e precisou de um carro. A lida interrompeu os estudos dele no segundo ano do 2º grau. Hoje, com a mesma Kombi que leva a criançada à escola, Naná ganha a vida, fazendo frete para um buffet. E só quando ele tem algum compromisso com a empresa é que a carona da criançada não acontece. Mesmo assim, deixa avisado com antecedência. "Se alguém da comunidade se separa, também sou chamado para fazer a mudança. Se alguém passa mal, a Kombi vira ambulância. E em dia de jogo do Santinha, é a Kombi Coral", fala Naná. A esposa, Thereza, faz transporte escolar particular.

"Eu sofri um acidente de trânsito em 96 e recebi um seguro disso. Com o dinheiro, dei entrada na primeira Kombi e dei o resto em 36 meses. Essa 98 também foi financiada em três anos, mas tá paga", diz o voluntário. Naná não sabe o nome do santo padroeiro dos motoristas, mas São Cristóvão certamente sabe (e protege) o de Naná. "A Kombi nunca me deixou na mão no caminho para a escola".

Foto: Tereza Maia.
Matéria publicada no Diario de Pernambuco, em 06 de março de 2008.