domingo, 21 de setembro de 2008

Без перевода, obrigada















Nem me pergunte o nome deste senhor aí em cima e embaixo, que não sei responder – nem saberei, infelizmente. Conheci – posso assim dizer apesar de ignorar a sua história - em São Petersburgo, cidade da Rússia cheia de armadilhas para os olhos. E de contradições daquelas que sacodem a gente lá para o centro da vida, para dentro das páginas amarelas, cheirando à estante de madeira, desgastadas por traça. Em pé na calçada – sempre um bom lugar para espiar o cotidiano - estava este homem, quando fiz as fotos, em julho deste ano, alto verão. Ficava na Avenida Nevsky, uma versão da 5 Avenida de Nova York. Lojas chiques, caras, de grifes importadas, americanas, italianas
e francesas vendiam as modinhas da estação. Foi, talvez, a única vez na viagem que não precisei do cirílico – aquela mistura de grego com hebraico da escrita russa - para ler as fachadas. GAP, Valentino, Dior... Bom, mas o que queria mesmo era saber o que este homem segurava nas mãos. Será que ele vendia algo também? De frente para ele, toda forasteira, travei. Somente percebi que um dos livros era um romance de espionagem - dava para ver pela capa. Já o outro eu soube a muito custo, depois de obter o livro de segunda mão - mais por instrumento de aproximação com o homem do que pelo conteúdo - e consultar Anna, a recepcionista do hotel onde fiquei. Eu havia trazido A História de São Petersburgo. Claro que valia saber de "Pedro O Grande", da aristocracia, de Lenin, de Trotsky, dos soviets, bolsheviks e comunistas, mas não mais do que da história daquele homem. Não consegui fazê-lo me entender. Naquele dia, tudo que eu pronunciava em russo era Без перевода (fala "spasiba"), ou, obrigada. Mesmo assim e sem saber quanto ele cobrava, se é que cobrava, troquei 30 rublos, a moeda local, pelo livro. Ou, 1,18 dólar. Ou, R$ 2,37, na cotação da data desta postagem. Ele sorriu. Eu saí. Desconcertada. Saí andando, flanando pela avenida, intrigada com aquele riso, segundo e último diálogo entre eu e ele, depois das fotos. Ignorante na cultura daquele homem, só consegui dúvidas. Senti um certo mal resolvido, um incômodo. Ele havia sorrido do pouco que deixei ou porque fui a sua única cliente, por todo o dia? Ou os dois? Continuei andando com uma certa vergonha de olhar para trás. Mais um dia na cidade e descobri que uma garrafa d`água de 300 ml custava 50 rublos, a corrida de ônibus, 20 rublos - transporte público é um ponto fraco da cidade que está entre as dez mais visitadas do mundo -, um sanduíche com refri na McDonald`s, 120 rublos, e um prato de sopa num fast food, 200. O guia da Lonely Planet informava que a renda mensal do são petersburguense era de 15.000 – pouco mais de dois salários mínimos do Brasil (R$ 415). Depois, também fiquei sabendo, por duas garis, que os idosos "sem aposentadoria" da cidade ou trabalham limpando (ruas, parques, lanchonetes) ou vendem livros e objetos pessoais, a exemplo dos ex-combatentes - São Petersburgo já passou por três grandes guerras e duas revoluções -, que se desfazem de comendas, medalhas, farda etc como se fossem matrioskas, as bonequeinhas russas encaixadas umas nas outras, souvenir mais popular do país. "Miséria é miséria em qualquer canto". Só numa manobra do inexorável eu poderia rever aquele senhor "invísivel". Esconderá, para sempre, um milagre - ao menos para mim e este blog. Pode ter sido um professor do conservatório de música erudita. Pode ter sido pai de cinco filhos. Pode ter pago todos os impostos ao governo. Pode ter trabalhado numa repartição pública, num banco norte-americano, vendido seguros de vida, carros, barcos. Contaria, ele mesmo, a história da Rússia? Vida ordinária.

Ps: o livro que eu trouxe tem uma dedicatória. Mas, essa história fica para a próxima postagem.

Custo de vida em São Petersburgo (em rublos)
Garrafa d`água 300 ml – 50.
Vodka razoável – 90.
WC público após a vodka – 15.
Boneca Matrioska, souvenir famoso – 200.
Sanduíche McDonald`s – 120.
Prato de sopa em fast food – 200.
Táxi – 400 (bandeirada mínima; se for clandestino a viagem é negociada).
Minibus – 20 (no máximo 30 pessoas). Renda mensal, média, de um cidadão de São Petersburgo – 15.000 (fonte: Lonely Planet).