domingo, 5 de outubro de 2008

Debaixo dos urubus

"Ó, os urubus!". Nem precisa apontar para o céu, porque os bichos são vistos de longe. Mas Ruby faz questão de interromper a conversa, para mostrar com o que convivem ela e os moradores do lugar. Nenhum detalhe do local, aliás, passa despercebido. Nem dela, nem de qualquer visitante. Difícil banalizar os sentidos sobre o que se vê, respira e escuta. De pronto, salta aos olhos o muro alto de cimento, bem reforçado com arame farpado e cerca elétrica. Ao redor, montes de barro cortados geometricamente. Monumentos que encobrem os restos das casas, comércio e indústria da cidade. O vento espalha o odor que sai das chaminés e o barulho do caminhão carregado anuncia mais trabalho a ser feito. Talvez os homens da polícia que guardam o lugar sejam os únicos à vontade com o cenário. Não Ruby. Norte-americana de 56 anos de idade, professora de música e habituada a paisagens de miséria do Brasil, dá aulas de canto a crianças do Morro do Cuscuz, ocupação de 219 famílias que se desenvolveu nas bordas do Aterro do bairro de Aguazinha, em Olinda, único destino das 30 mil toneladas de lixo produzidas no município, diariamente.

O encontro acontece na escadaria em frente ao terraço de dona Narcisa, uma das poucas moradoras que têm casa em alvenaria, porque o morro é quase todo de barracos que se sustentam na sorte. O coro ensaia nos degraus cimentados, ao gosto do sol e da chuva. A regente distribui as xerox das letras. Defronte dos meninos, ensina as notas mais simples. O dó, ré, mi, fá, sol, lá, si, dó distrai as crianças dos urubus, do fedor dos dejetos fermentando sob os montes de barro, da barriga vazia, da violência dentro de casa. A "bagulhagem" ou catação do lixo fica sem a mão-de-obra dessas crianças, ao menos no ensaio. "Aqui, as pessoas se matam por lixo", testemunha Ruby, que batizou o projeto de Viver e Sorrir. Nestes dias, os alunos aprendem canções de Natal e os hinos do Brasil e Pernambuco, embora os versos nem sempre façam sentido para esses alunos. "Salve, ó terra de altos coqueiros/ De beleza soberbo estendal/ Nova Roma dos bravos guerreiros/ Pernambuco, imortal, imortal". O encontro se dá apenas às sextas-feiras, entre os turnos escolares. Ruby quer formar um coro para apresentações em escolas, no final deste ano.

Apresentar a flauta doce será o próximo desafio da professora. "Além de um teto para ensaiar, falta um lanche reforçado, porque com fome a criança nem consegue soprar", lamenta a professora, que faz parte da Organização Não-Governamental Círculo de Pernambuco. Ruby ensina canto e violino também em mais duas ocupações do Recife: Ilha do Destino, em Boa Viagem, e Comunidade do Pilar, no Centro. Essas têm mais sorte, porque já incluíram a dança e futebol no projeto. "Mas esse morro é o mais carente. Basta olhar para saber. Difícil encontrar um lugar pior do que esse", diz Ruby. Para subir no Morro do Cuscuz, Ruby ainda precisa da ajuda da professora de ballet e companheira de trabalho, Cláudia Frade. "Eu sou novata. Não tenho crachá de gente conhecida. Aí não sou louca de entrar sozinha", justifica.

Ruby Jean Boddy roda o Brasil desde que partiu da cidade natal, Los Angeles, no estado da Califórnia. Saiu de lá aos quatro anos de idade. Veio com os pais, missionários. Acompanhou o pai, Loren, na construção de igrejas e escolas no Sul e Sudeste do país. Por ser americana e não "bem-vinda" pelo regime militar de 1964, a família precisou se reservar em Pelotas, interior do Rio Grande do Sul. Esse foi o último destino de Ruby, antes de mudar para o Recife, aos 16 anos de idade, junto com a mãe, Caroline. Chegaram apenas de malas nas mãos e ficaram hospedadas de favor em um orfanato, no bairro de Nova Descoberta. "Conhecer favela eu conhecia. Mas eu fui poupada de entrar pelos meus pais. Então, essa foi a minha primeira experiência de verdade". Formou-se bacharel de música aqui. Logo decidiu dividir o conhecimento da academia com as comunidades que ia conhecendo. Hoje, no Morro do Cuscuz, Rubby nem aparenta o desgaste de quem convive com a carência de tudo. Aponta para os urubus no céu, mas também mostra caminhos às crianças do aterro. A música no morro preenche o silêncio das políticas públicas.

A mãe e o medo
A família de Andréa Mercês, de 33 anos de idade, é uma das 219 do Morro do Cuscuz cadastradas na Prefeitura de Olinda, em 2003. A mulher, três filhos menores e o companheiro moram em uma das poucas casas em alvenaria do lugar. Mas a miséria com que convivem tira a graça de quase tudo. As aulas de música da professora Ruby dão um tanto de paz à mãe e diversão aos meninos. O mais velho, de 12 anos, já sabe de cor os versos da primeira canção que conheceu dia desses, "Falai pelas Montanhas". A menina, filha do meio, tem outro talento. Aprende taekwondo, arte marcial que já lhe deu medalha.
A renda da família, conta Andréa, vem da Bolsa Família (R$ 112) e da "ôia" do companheiro, do bico como ajudante de pedreiro. Nada certo. "Faz cinco anos que eu moro aqui, viu? Só que pra mim é muito mais. A gente aqui só tem a Deus. Aqui, a violência, as drogas, essas coisas, começam desde cedo. Tenho medo pelos meus filhos", fala a mãe, na porta da casa de dois cômodos - sendo um deles a cozinha, ondedormem as crianças, dividindo um beliche. O quimono do taekwondo fica dobradinho no guarda-roupas coletivo, no quarto do casal. O banheiro, que não existia quando a família chegou, foi construído aos poucos, com retalhos de cerâmica e uma pia quebrada que achou no lixo.
Andréa aprendeu a escrever o próprio nome há pouco tempo. Nem o da filha - única da casa que aprendeu a ler de verdade - sabe ainda. As crianças estão na escola. "Ganhei a formatura faz um mês. Meu sonho é aprender matemática, porque antes de colocar um produto no cabelo, é bom saber ler, da quantidade, do tempo", fala a mãe, que, para não ver os filhos com fome, cobra dois reais por uma escova no cabelo das mulheres da vizinhança. Tem chapinha e secador, que conseguiu comprar à prestação. "Eu faço o máximo, para não viver na miséria". Nesse dia, o almoço e o jantar foram feijão preto e cuscuz.

O menino e o entulho
Um facão preso na canela, para cortar os entulhos, meião até os joelhos, para não pegar "germes", e boné, apenas porque encontrou no lixo. É assim que trabalha Joaquim (nome fictício), de apenas 15 anos de idade, no Aterro Controlado de Olinda. Luvas não usa porque atrapalha a "bagulhagem", fala o menino, cuja experiência vem dos 10 anos. Por cada quilo de plástico que consegue bagulhar ou catar, ganha 35 centavos. No final de cada semana, diz o menor, chega a tirar R$ 60 - equivalente a 20 quilos ou cerca de 370 garrafas PET. Parte do apurado fica com a mãe, que cria mais três filhos. O padastro e o irmão fazem o mesmo trabalho. A casa da família, aliás, tem vista para o aterro. Dali para os montes de lixo é um pulo. "Venho todo dia. Tem até noite que eu venho, porque tem pouca gente", explica o menino. Nesse dia, havia juntado 40 quilos de plástico, desde às quatro da manhã. Joaquim está fora da escola desde o ano passado. Não sobra tempo nem cabeça para a música da professora Ruby. Vez por outra, vê gente brigando, puxando faca por material. Apenas dois policiais militares, por turno, guardam o lugar. O menino é apenas um dos menores na bagulhagem. Na placa fixada no portão de acesso ao lugar, um contra-senso: "proibida a entrada de crianças e adolescentes".

Foto: Cecília Sá Pereira.