domingo, 27 de julho de 2008

Do aeroporto à Lua três vezes

Por dia: 200 quilômetros rodados. Mensalmente: 5,6 mil quilômetros. Ao final de um ano todo: 62,2 mil quilômetros. Total de profissão: 2,5 milhões de quilômetros em viagens para cima e para baixo pelo país. Se astronauta fosse, João Rafael teria ido e voltado da lua três vezes - e ainda sobrariam milhas. Faria o caminho do escritor francês Júlio Verne, A volta ao mundo em 80 dias, 69 vezes. Mas seu João "Doido" - apelido entre os colegas - anda no asfalto mesmo. Aliás, nunca sequer entrou numa aeronave. É o taxista 001 de uma cooperativa. Tem 41 anos de carreira só no Aeroporto Internacional do Recife. Orgulha-se de ser o mais antigo na ativa. Começou a trabalhar no tempo em que avião tinha hélice em vez de turbina, voar era coisa somente de "bacana", a moeda cruzeiro pagava a corrida, Juscelino Kubitschek mandava no Brasil e motorista - cujo dia é comemorado justamente hoje - era "chofer".

Férias, João "Doido" nunca tirou. E olhe que são 57 anos de profissão, incluindo os 41 do aeroporto. A única vez que se deu ao luxo de descansar foi quando tinha um Chevrolet Ômega. "Esse carro era o preferido da presidência. Então, quando Fernando Henrique veio inaugurar uma barragem em Serra Talhada, trabalhei na comitiva", lembra o taxista, sobre 1998. Ah, o descanso ficou por conta do hotel e comida de graça, durante sete dias. Antes de táxi, dirigiu caminhão e "Marinete", espécie de Kombi, fazendo frete e transportando gente do interior à capital e vice-versa - não existia rodoviária e a parada era no Parque 13 de Maio, no Centro. "Naquela época, só tinha comércio no Recife. Depois que inventaram a estrada, a coisa se espalhou". Antes de motorista, foi trabalhador de roça, junto com o pai, em Araruana, cidade paraibana onde nasceu e que abandonou, aos 16 anos de idade. "Chegava o final do ano e eu só ganhava dinheiro para comprar uma roupa de mescla azul e uma percata pega bode. Andei dois dias para chegar em Guabiraba. Tava sonhando ser carregador de caixeiro viajante, da estação de trem para o hotel. Aí, uma dona de pousada me chamou para trabalhar como gato de hotel, que hoje é chique, chamado de re-cep-ci-o-nis-ta", soletra.

De "gato de hotel", seu João pulou para motorista. Tinha 19 anos. A primeira "carta para dirigir", não esconde seu João, foi "arranjada" pelo fazendeiro Chicuta Pedrosa, para quem trabalhou de "chofer". "Naquela época ele era coronel, né? Até o meu nome ele assinou, porque eu nunca entrei numa escola", confessa. Assinar o nome, aliás, foi a única coisa que ele aprendeu. Ainda hoje não sabe a diferença da letra A para a B. Mas sabe da vida. E muito. "Não leio as placas, mas conheço tudo desse estado. Basta gravar a estrada, o mato, a rua, o muro, a cara das pessoas. Só errei uma vez, fui bater em Garanhuns em vez de Canhotinho, porque me confiei na leitura do passageiro, que só depois de rodar bem muito me disse que também era analfabeto". Os 11 filhos (sendo oito ainda vivos), ao contrário dele, foram à escola. "Eu não tinha tempo de visitar a família, quanto mais de aprender. E olhe que a minha esposa era professora". As cartas de amor do casal quem escrevia e lia para seu João era um amigo "bombeiro".

Sem distinção - Seu João não deixa um passageiro carregar mala nem peso. Acha que é obrigação do taxista - ou um costume dos tempos de carregador na estação de trem. Faz viagem com muita gente famosa. Elba Ramalho, Genival Lacerda e o jogador de futebol Rivaldo são os que a memória gravou. Mas, para ele, tanto faz se é artista, político, jogador de futebol ou anônimo. "Eu não trato com diferença porque também não quero que façam comigo". Já viu muita coisa dentro do carro. Tem um repertório sem fim de histórias para contar. "Já teve muita briga, muito rala e rola e mulher deixando o carro no estacionamento do aeroporto para encontrar o outro". Mas, para ele, tanto faz falar ou não. Seu João está ali para trabalhar. A vida toda. "Sustentei os meus filhos e agora ajudo a criar os meus 30 netos e 30 bisnetos com o táxi". Ele mora com um dos dois filhos que também são taxistas, a nora e duas crianças, em Prazeres. O apelido "Doido" foi dado pelos colegas porque topa todas. Um dia desses, fez uma corrida até Afogados da Ingazeira, a 386 quilômetros do Recife, para ganhar R$ 600. "Relampeava mais do que tudo, mas eu precisava".

Se a primeira "carta de dirigir" foi arranjada pelo coronel, a última custou um pouquinho ao seu João. "Da última vez que fui renovar, em 2006, o médico ficou achando ruim. Me disse para não dirigir mais. Aí, eu falei: doutor, eu tenho a carta há 57 anos. Olhe o meu prontuário. Veja se eu já provoquei algum acidente. Ou o senhor bota ela (a secretária) para encher a ficha (do Detran) ou eu volto para a enxada". Seu João nunca pensou em ser outra coisa na vida. Quem viaja no táxi dele, entende direitinho por quê.

(texto publicado no Diario de Pernambuco, em 25 de julho de 2008).

4 comentários:

Tell Aragão disse...

vai ver que é dele que vem a expressão "esse é rodado"... rsrs
Lembrei de um blog, que é escrito por um taxista do rio grande do sul... ele conta as histórias vividas em seu táxi... virou até livro... confere lá depois... www.taxitramas.blogspot.com
bjs

Anônimo disse...

Parabéns pela matéria!

Bjos

Anônimo disse...

Braguinha, estou adorando as historias Ordinarias. Voltarei sempre para le-las. Um abraco saudoso do distante norte, Joao.

Unknown disse...

Gostei do blog...muito bom..vou voltar mais vezes..
João Valadares