quarta-feira, 3 de dezembro de 2008

Na periferia de si mesmo

A rima é a alma do rap. O rap, a música do hip hop. O hip hop, a expressão da periferia cujo dia se celebra exatamente amanhã, no mundo inteiro. E fazer uma rima diferente, menos óbvia, com a pobreza, a violência e a morte do que a gente se acostumou a chamar de periferia é o rap de Sérgio Ricardo Cavalcante Matos. Tudo isso tem na história dele, homem branco nascido há 34 anos, no Coque, comunidade de 40 mil pessoas, com o pior Índice de Desenvolvimento Humano do Recife. De tão cheia de ganhos e perdas - algumas sem volta - a história de Sérgio é uma daquelas que a gente não sabe se conta de trás para frente ou de frente para trás. Ele não não conheceu o pai, apanhou em casa, perdeu a mãe aos oito anos de idade, perambulou na rua, conheceu armas e drogas, caiu de mão em mão, chegou à escola somente aos 10 anos. Mas escapou da sina ruim: se formou em Sociologia, encontrou pares no hip hop, foi (re)batizado de Sociólogo da Favela e doa o que aprendeu a outrosjovens que poderiam repetir a história dele. Hoje, Sérgio está na periferia dele mesmo. E procura a rima que (ainda) não fez. Quer viajar ao Ceará, para alguém da família encontrar.

"Se eu não acreditasse na minha própria mãe, ia acreditar em quem? Só era a gente no mundo". A pergunta foi uma resposta à outra, feita na entrevista. Sérgio lembra apenas de algumas coisas que a mãe repassou sobre a vida deles dois. Ela falou que foi expulsa de casa, no Ceará, porque engravidou. Contou que abortou, que fugiu para o Recife. Disse que sabia falar três idiomas, que viajou no mundo e foi torturada porque era militante política. Confessou que Sérgio nasceu de um "romance com um gringo americano que veio num navio ao Recife, partiu e nunca mais voltou". O nome dela: Sara Cavalcante Matos. "Ela era inteligente, politizada demais".

Sara era prostituta. "Ela não me falava, mas eu via que ela saía toda a noite para o Porto do Recife", lembra Sérgio. "Quando ela voltava com dinheiro para casa, ela me arrumava todo. Quando não, eu apanhava. Acho que ela descontava a dor e a revolta do mundo em mim". Era 15 de novembro de 1982 - data gravada a ferro quente na memória dele -, quando Sara foi atropelada, em frente ao porto. "Eu fiquei esperando em casa. Mas ela nunca mais voltou". O único documento familiar que restou nas mãos de Sérgio foi o registro de nascimento da mãe. Pelo papel, ela nasceu em 25 de dezembro de 1947, na cidade de Sobral, no Ceará. Era filha de Zilka e neta de Emílio e Zuleika.

Sara era negra. Os olhos verdes de Sérgio, diz ele, são herança do pai que ele não conheceu. São também os olhos de gato e muitas (sobre)vidas. "Eu era bonitinho, afilado, todo mundo queria ficar comigo, depois que Sara morreu. Eu costumo dizer que fui salvo pelos olhos verdes e pela pele branca. Acho que se eu fosse negro, teria menos chance. Mas, de verdade, o que me salvou foi a solidariedade das comunidades carentes", observa Sérgio. E o menino passou de mão em mão, até os 21 anos de idade, quando achou que já podia se sustentar. Trabalhou de camelô, vendendo pilha, "muamba" e veneno de rato. Tinha ponto na Rua da Praia, Rua do Rangel e Beco do Veado, no Centro da cidade. "Só comia se tivesse dinheiro. Foi minha primeira profissão, onde aprendi a encarar as pessoas". Mas as pessoas não viam Sérgio.

O futuro sociólogo se fez menos invisível quando entrou numa sala de aulas. "A única coisa boa no tempo sem casa foi uma família me colocar na escola, quando eu já tinha 10 anos", fala. Sérgio morou no Coque, Rio Doce, UR 2, Vasco da Gama. No Ibura, na escola estadual Lagoa Encantada, ele fez até o 3º ano. "Difícil não cair no tráfico. Até hoje vivo tenso, rude, com medo de passar fome de novo".

"Tentei passar logo no vestibular e não consegui. Mas eu não podia desistir. Não tinha alternativa. Aí, estudei mais um ano com o que tinha, português, literatura e história", relembra. "Escolhi Sociologia porque conheci muita gente na rua que se preocupava com os movimentos sociais do país". Sérgio se formou na UFRPE, em 2003, e prometeu aosprofessores que "até os 50 anos de idade" terá o doutorado. Ficou conhecido por levar a cultura de rua à academia e vice-versa. Daí o codinome Sociólogo da Favela. "De cara, as pessoas pensam que eu faço apologia à favela. Se me conhecem, entendem que a favela é a minha história de vida. Tudo que ganhei veio das ruas".

Adolescente, Sérgio imitava o grupo Menudo com outros jovens. "A gente dançava nos clube e ganhava uns trocados. Foi quando eu percebi que a arte seria um caminho para não me perder", conta. "Nessa época, o break era muito forte no Brasil. Fui me encontrando nessa cena, criando grupos e um espaço para o hip hop na cidade". Com a dança, a música e o grafite, os pilares do movimento cultural, Sérgio hoje ensina como se constrói um cidadão. Está à frente da Associação Metropolitana do Hip Hop em Pernambuco, único filho que botou no mundo. A lida com as questões da periferia rendeu a Sérgio uma profissão na Secretaria Estadual de Desenvolvimento Social e Direitos Humanos. É coordenador de cultura. Cria projetos de educação para jovens de 16 a 24 anos, em situação de vulnerabilidade social. Jovens que poderiam repetir a história dele.

Falta ao Sociólogo da Favela fazer par com ele mesmo. Falta a casa. Falta a família. Sérgio mora na Avenida Dantas Barreto, junto com o amigo rapper Tiger. "Enquanto não tiver meu espaço, vou achar que continuo perambulando, como quando era menino. Ainda vou encontrar nem que seja um parente em Sobral. É um buraco existencial. Um jeito de reconhecer a minha humanidade". Sérgio quer viajar para o Ceará. Quer fazer outra rima com o vazio, refletido nos olhos. Os olhos verdes que já foram a redenção e hoje são solidão. Quer sair da periferia dele mesmo.

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