domingo, 21 de setembro de 2008

Без перевода, obrigada















Nem me pergunte o nome deste senhor aí em cima e embaixo, que não sei responder – nem saberei, infelizmente. Conheci – posso assim dizer apesar de ignorar a sua história - em São Petersburgo, cidade da Rússia cheia de armadilhas para os olhos. E de contradições daquelas que sacodem a gente lá para o centro da vida, para dentro das páginas amarelas, cheirando à estante de madeira, desgastadas por traça. Em pé na calçada – sempre um bom lugar para espiar o cotidiano - estava este homem, quando fiz as fotos, em julho deste ano, alto verão. Ficava na Avenida Nevsky, uma versão da 5 Avenida de Nova York. Lojas chiques, caras, de grifes importadas, americanas, italianas
e francesas vendiam as modinhas da estação. Foi, talvez, a única vez na viagem que não precisei do cirílico – aquela mistura de grego com hebraico da escrita russa - para ler as fachadas. GAP, Valentino, Dior... Bom, mas o que queria mesmo era saber o que este homem segurava nas mãos. Será que ele vendia algo também? De frente para ele, toda forasteira, travei. Somente percebi que um dos livros era um romance de espionagem - dava para ver pela capa. Já o outro eu soube a muito custo, depois de obter o livro de segunda mão - mais por instrumento de aproximação com o homem do que pelo conteúdo - e consultar Anna, a recepcionista do hotel onde fiquei. Eu havia trazido A História de São Petersburgo. Claro que valia saber de "Pedro O Grande", da aristocracia, de Lenin, de Trotsky, dos soviets, bolsheviks e comunistas, mas não mais do que da história daquele homem. Não consegui fazê-lo me entender. Naquele dia, tudo que eu pronunciava em russo era Без перевода (fala "spasiba"), ou, obrigada. Mesmo assim e sem saber quanto ele cobrava, se é que cobrava, troquei 30 rublos, a moeda local, pelo livro. Ou, 1,18 dólar. Ou, R$ 2,37, na cotação da data desta postagem. Ele sorriu. Eu saí. Desconcertada. Saí andando, flanando pela avenida, intrigada com aquele riso, segundo e último diálogo entre eu e ele, depois das fotos. Ignorante na cultura daquele homem, só consegui dúvidas. Senti um certo mal resolvido, um incômodo. Ele havia sorrido do pouco que deixei ou porque fui a sua única cliente, por todo o dia? Ou os dois? Continuei andando com uma certa vergonha de olhar para trás. Mais um dia na cidade e descobri que uma garrafa d`água de 300 ml custava 50 rublos, a corrida de ônibus, 20 rublos - transporte público é um ponto fraco da cidade que está entre as dez mais visitadas do mundo -, um sanduíche com refri na McDonald`s, 120 rublos, e um prato de sopa num fast food, 200. O guia da Lonely Planet informava que a renda mensal do são petersburguense era de 15.000 – pouco mais de dois salários mínimos do Brasil (R$ 415). Depois, também fiquei sabendo, por duas garis, que os idosos "sem aposentadoria" da cidade ou trabalham limpando (ruas, parques, lanchonetes) ou vendem livros e objetos pessoais, a exemplo dos ex-combatentes - São Petersburgo já passou por três grandes guerras e duas revoluções -, que se desfazem de comendas, medalhas, farda etc como se fossem matrioskas, as bonequeinhas russas encaixadas umas nas outras, souvenir mais popular do país. "Miséria é miséria em qualquer canto". Só numa manobra do inexorável eu poderia rever aquele senhor "invísivel". Esconderá, para sempre, um milagre - ao menos para mim e este blog. Pode ter sido um professor do conservatório de música erudita. Pode ter sido pai de cinco filhos. Pode ter pago todos os impostos ao governo. Pode ter trabalhado numa repartição pública, num banco norte-americano, vendido seguros de vida, carros, barcos. Contaria, ele mesmo, a história da Rússia? Vida ordinária.

Ps: o livro que eu trouxe tem uma dedicatória. Mas, essa história fica para a próxima postagem.

Custo de vida em São Petersburgo (em rublos)
Garrafa d`água 300 ml – 50.
Vodka razoável – 90.
WC público após a vodka – 15.
Boneca Matrioska, souvenir famoso – 200.
Sanduíche McDonald`s – 120.
Prato de sopa em fast food – 200.
Táxi – 400 (bandeirada mínima; se for clandestino a viagem é negociada).
Minibus – 20 (no máximo 30 pessoas). Renda mensal, média, de um cidadão de São Petersburgo – 15.000 (fonte: Lonely Planet).

quarta-feira, 20 de agosto de 2008

O eremita moderno



Mendigo para uns. Profeta para outros. Louco para a maioria. Misterioso para todos. Esta é a história de Zé Carlos, um morador de rua que faz das movimentadas vias de Boa Viagem o seu deserto particular.

Em vez do manto em cambraia cobrindo todo o corpo, a calça jeans, o casaco em nylon com capuz e o tênis. No lugar da barba crescida, escorrida queixo abaixo, os pêlos aparados. Ao invés do cajado e da lanterna nas mãos, o aceno de bom dia, boa tarde e boa noite. Zé Carlos é um eremita. Mas um eremita moderno. Que não usa manto, não tem barba grande, cajado nem lanterna, como o da religião e o da carta do tarô. Que não se isolou da gente. Que não nega a palavra. Ao contrário. Mesmo no silêncio profundo, condição de um eremita, é capaz de falar aos outros pelo olhar. Zé Carlos compra pipoca, biscoito, bombom, cerveja, como qualquer um da gente. Conta de poder e política no Brasil - ao jeito dele, mas conta. Descansa da rotina não num deserto ou esconderijo, mas onde qualquer um pode vê-lo, na esquina da Rua Padre Carapuceiro com a Rua dos Navegantes, em Boa Viagem. Caminha diariamente na Avenida Boa Viagem. Contempla a natureza e a gente, como se ainda quisesse tirar conhecimento delas. É um eremita moderno. Sem opinião ou crença formada. Apenas existe na paz.
O eremita tal qual o da religião e o do tarô escolhe viver isolado, afastado da gente. Faz isso para descobrir conhecimento no que está em volta. Mas Zé Carlos - nome que tem em Boa Viagem - não é assim. Até faz sua viagem pelas ruas da vizinhança sozinho, mas não solitário. Vai diária e pontualmente (perto do meio-dia) ao portão de pedestres que faz fronteira entre o Shopping Center Recife e uma ilha de prédios de negócios. Cumprimenta quem passa por ele. A hora do almoço aumenta o vai-e-vem. E bem-aventurado o que receber um suave "bom dia. Como vai? Estava viajando?". Soa quase como um Sermão (moderno) da Montanha: "bem-aventurados os que promovem a paz, porque são chamados de filhos de Deus". A paz, como já mostraram Jesus Cristo, Buda e outros religiosos, está na síntese. Num simples cumprimento de Zé Carlos.
O eremita Zé Carlos não parece sê-lo por penitência, religiosidade, misantropia (aversão ao ser humano) ou apego à natureza, como se diz no tarô. Em verdade, quem o conhece, nem cobra motivo. Na esquina, no fiteiro, no self-service, no calçadão ou na portaria dos prédio vizinhos à esquina onde dorme, ninguém sabe seu nome completo, idade, ascendência, se teve casa, carro, cachorro, emprego. Ninguém sabe, sequer, o tanto de tempo ele vive na rua. É como se todo mundo já admitisse aquele homem ali, sem passado. Guardião do presente. Profeta - como também ficou conhecido na vizinhança - do futuro.
Zé Carlos compra biscoito recheado para dar às crianças que estão no sinal de trânsito. Arranja pipoca para dar aos pombos. Abre mão da quentinha de comida oferecida pelo vizinho do bairro, quando já foi satisfeito com outra doação. Diz que aquele alimento deve servir a quem precisa mais do que ele. O pouco dinheiro que, enventualmente, aparece no bolso na calça jeans é dividido com outros em situação de rua também. Ele, ele mesmo não pede. Ao contrário, ensina a quem convive com ele a não ter pena nem dó. Existe uma espécie de pacto com a comunidade. Ninguém incomoda ninguém. Silêncio e respeito de ambas as partes. Mas, por que Zé Carlos haveria de se incomodar, se tem elegância até para aceitar um dia inteiro com apenas uma sopa na barriga? No tarô, tirar a carta do eremita significa que algo perdido será recuperado, que uma revelação virá. E o que é dar biscoito recheado às crianças no sinal, se não lhes devolver um pouco de infância?
O casaco em nylon preto cobre Zé Carlos à noite. É o manto de proteção. E só, na esquina do bairro nobre. Ele não tem apegos. A trave da placa de trânsito - de sentido proibido - serve de apoio para a cabeça. Somente um papelão separa o corpo dele da calçada de pedras portuguesas bem cuidadas. Mas ele nunca fez queixa a ninguém. Nunca reclamou. O farol alto do carro não o acorda. Ele nem se mexe com o cachorro que se aproxima curioso. Zé Carlos nunca reclamou. Também nunca viveu diferente. E nunca, no caso dele, não é exagero. Porque a rua estica a vida. Acostuma os olhos. Banaliza as coisas. Deixa a gente ordinária.
Mas Zé Carlos não é gente ordinária. Ele resiste, embora faça, para ele mesmo, as mesmas mínimas coisas, todos os dias. Há nove anos, o Diario o conheceu. Em 17 de outubro de 1999, o jornal publicou a reportagem com as "figuras típicas das ruas da cidade", os "exóticos que compõem a paisagem do Recife". Já naquele dia, mais falante que hoje, ele disse que "enquanto a sabedoria não tomar o lugar da pobreza e da maldade, o mundo não vai ter jeito". E proferiu: "Deus não quer que a gente ande com bíblias debaixo do braço ou viva enfurnado em templos. Ele só quer o amor e a paz". No reencontro, na reportagem de agora, ele é o eremita moderno, que vai ganhar a "chave do mundo". No tarô, não existe uma carta ruim. E quando uma carta sai repetida, não é coincidência. Zé Carlos existirá sempre.


O reencontro
por Jaqueline Maia, fotógrafa

Ao ser publicada pela primeira vez em um jornal, uma imagem deve trazer informações capazes de dar veracidade aos fatos narrados no texto da matéria. Após a publicação, a foto vai para o arquivo e ali pode ficar por vários anos, podendo ser reutilizada ou não. Mas quando essa foto é publicada pela segunda vez, ela adquire outro siginificado: resgatar da memória referências, histórias e histórias que estavam guardadas, além de ressaltar a importância da própria fotografia em questão. Quais fotos já foram vistas duas vezes em um mesmo jornal? Poucas, acredite.
Um personagem que volta às páginas de um jornal, pelas mãos da mesma fotógrafa, após nove anos de arquivo, é um acontecimento raro. Por isso, publicou-se, aqui, uma foto antiga e uma nova do mesmo personagem. Para a maioria dos leitores, Zé Carlos passa a existir agora, no momento em que lê a matéria. Para a fotógrafa, o Profeta, pois foi com esse nome que o conheci lá atrás, é uma história (ou estória?) muito bacana para guardar e contar.




terça-feira, 5 de agosto de 2008

De carona na Kombi


Esta é a história de Naná, o motorista voluntário que leva crianças à escola, todos os dias, para fazer valer o direito à educação.

"Bora, bora, bora. Todo mundo se ajeita, coloca a mochila para dentro, porque tá na hora de partir. Alguém ainda não assinou o livro?". Essa reza o autônomo Naná tem todo dia, antes de fazer duas viagens na Kombi, para levar 30 crianças à escola pública municipal Nilo Pereira. Sai do lendário bairro do Poço da Panela, ainda sob o sol frio, em direção à Casa Amarela. O trajeto de dois quilômetros, quando feito a pé, leva meia hora. Isso se não chove, motivo para faltar à aula. Mas, na carona voluntária de Naná, não chega a dez minutos. E o vuco-vuco na Kombi só não é maior por conta disso. O futebol do final de semana, a música da moda, a cena da novela, a prova do dia, tudo distrai os passageiros e o motorista, a caminho da cidadania.

A história da Kombi solidária existe há seis anos. A primeira viagem de todas aconteceu justamente pelo dia das crianças. Foi o jeito que Naná achou de presentear a meninada do Poço da Panela. Começou com cinco alunos. Na manhã seguinte, já havia 12. E uma semana depois, 32. Para agüentar na missão, conta com o apoio da Confraria dos Amigos do Poço, "um grupo de boêmios, moradores ou visitantes do bairro", explica Naná, batizado de Evaldo Gomes de Moura, nascido em 1967 no município de João Alfredo, criado em Camaragibe e morador do Poço há 20 anos. A tal confraria é que passa o caderninho das contribuições. "Um dá R$ 2, outro dá R$ 5, R$ 10". O dinheiro serve para abastecer de gás a Kombi branca 98 e fazer algum reparo essencial.

A Kombi abre às 6h30. Fica parada à espera dos passageiros defronte de dois patrimônios do Poço da Panela (e, por que não, de Pernambuco): a Igreja de Nossa Senhora da Saúde e o bar de seu Vital. O primeiro foi construído no século 19, como promessa feita pelo capitão Henrique Martins, dono de terras no povoado. A graça, atendida, era curar a esposa de uma doença grave. Seu Vital mora desde 1964 no bairro e há 38 anos tem o comércio que nunca mudou de lugar. "A venda-boteco-abrigo emocional de seu Vital é onde uma parte da população recifense se casa e outra parte bebe, celebrando os noivos, os jogos de dominó ou qualquer coisa em movimento", define o jornalista e um dos colaboradores da Kombi, Samarone Lima.

Quem vai na condução tem que assinar o livro de presença. Daiana, Dennys, Júlia, Maria, Romário, Tiago, Túlio.. Até dar 15, número bastante para Naná fazer a primeira viagem. O motorista solidário confere nome por nome. "Ele pede para escrever o nome completo, para ver se a criança tem a letra bonitinha, se tá escrevendo direitinho, se sabe fazer todo", conta a dona-de-casa Sandra Lima, de 45 anos, mãe de Sandrini, de 10, aluna da 4ª série da escola municipal. "Ele motiva mais, cobra e se relaciona direto com a escola. É um controle que ajuda os pais". Mas Sandrini tem a própria explicação para gostar da história: prefere a "bagunça" da Kombi à caminhada de quase dois quilômetros, logo cedo da manhã, atravessando três avenidas bem movimentadas.

Naná não precisa pedir licença para entrar na Nilo Pereira. "Ele é o elo entrea escola e a comunidade. É praticamente a família dessas crianças. Ele sabe de tudo delas e da escola. Sabe quando tem reunião, quando não tem aula, quando o aluno é suspenso. Diminuíram muito as faltas e os atrasos, depois que ele passou a fazer esse trabalho. Pena que ele não tenha o reconhecimento do município. Ah, se todo mundo tivesse um Naná desse, a vida seria outra", comenta a diretora da unidade, Damaris Diniz. A escola tem cerca de 1,1 mil alunos matriculados, em turmas até a 8ª série.

Romário Baltar, de 10 anos, aluno da 4ª série, vez por outra "ganha" um recadinho da direção da escola. "É, eu sou invocado, tiro muita brincadeira. Mas esse ano eu tô melhorando", admite o menino, que foi batizado com esse nome porque nasceu durante a Copa do Mundo de 98, na França (justamente neste ano o atacante Romário foi cortado da Seleção Brasileira). "Quer dizer, foi minha mãe que disse isso, né?". E apontando para o amigo Naná, Romário, o da Kombi, solta outra: "mas eu vim dessa pança aqui também". Se qualquer criança adoece, o destino é o posto de saúde do Poço.

Aprender a dirigir foi uma necessidade para Naná. Começou a trabalhar muito cedo, aos 11 anos de idade, junto com o pai, num supermercado. Chegou a ser gerente e precisou de um carro. A lida interrompeu os estudos dele no segundo ano do 2º grau. Hoje, com a mesma Kombi que leva a criançada à escola, Naná ganha a vida, fazendo frete para um buffet. E só quando ele tem algum compromisso com a empresa é que a carona da criançada não acontece. Mesmo assim, deixa avisado com antecedência. "Se alguém da comunidade se separa, também sou chamado para fazer a mudança. Se alguém passa mal, a Kombi vira ambulância. E em dia de jogo do Santinha, é a Kombi Coral", fala Naná. A esposa, Thereza, faz transporte escolar particular.

"Eu sofri um acidente de trânsito em 96 e recebi um seguro disso. Com o dinheiro, dei entrada na primeira Kombi e dei o resto em 36 meses. Essa 98 também foi financiada em três anos, mas tá paga", diz o voluntário. Naná não sabe o nome do santo padroeiro dos motoristas, mas São Cristóvão certamente sabe (e protege) o de Naná. "A Kombi nunca me deixou na mão no caminho para a escola".

Foto: Tereza Maia.
Matéria publicada no Diario de Pernambuco, em 06 de março de 2008.

domingo, 27 de julho de 2008

Do aeroporto à Lua três vezes

Por dia: 200 quilômetros rodados. Mensalmente: 5,6 mil quilômetros. Ao final de um ano todo: 62,2 mil quilômetros. Total de profissão: 2,5 milhões de quilômetros em viagens para cima e para baixo pelo país. Se astronauta fosse, João Rafael teria ido e voltado da lua três vezes - e ainda sobrariam milhas. Faria o caminho do escritor francês Júlio Verne, A volta ao mundo em 80 dias, 69 vezes. Mas seu João "Doido" - apelido entre os colegas - anda no asfalto mesmo. Aliás, nunca sequer entrou numa aeronave. É o taxista 001 de uma cooperativa. Tem 41 anos de carreira só no Aeroporto Internacional do Recife. Orgulha-se de ser o mais antigo na ativa. Começou a trabalhar no tempo em que avião tinha hélice em vez de turbina, voar era coisa somente de "bacana", a moeda cruzeiro pagava a corrida, Juscelino Kubitschek mandava no Brasil e motorista - cujo dia é comemorado justamente hoje - era "chofer".

Férias, João "Doido" nunca tirou. E olhe que são 57 anos de profissão, incluindo os 41 do aeroporto. A única vez que se deu ao luxo de descansar foi quando tinha um Chevrolet Ômega. "Esse carro era o preferido da presidência. Então, quando Fernando Henrique veio inaugurar uma barragem em Serra Talhada, trabalhei na comitiva", lembra o taxista, sobre 1998. Ah, o descanso ficou por conta do hotel e comida de graça, durante sete dias. Antes de táxi, dirigiu caminhão e "Marinete", espécie de Kombi, fazendo frete e transportando gente do interior à capital e vice-versa - não existia rodoviária e a parada era no Parque 13 de Maio, no Centro. "Naquela época, só tinha comércio no Recife. Depois que inventaram a estrada, a coisa se espalhou". Antes de motorista, foi trabalhador de roça, junto com o pai, em Araruana, cidade paraibana onde nasceu e que abandonou, aos 16 anos de idade. "Chegava o final do ano e eu só ganhava dinheiro para comprar uma roupa de mescla azul e uma percata pega bode. Andei dois dias para chegar em Guabiraba. Tava sonhando ser carregador de caixeiro viajante, da estação de trem para o hotel. Aí, uma dona de pousada me chamou para trabalhar como gato de hotel, que hoje é chique, chamado de re-cep-ci-o-nis-ta", soletra.

De "gato de hotel", seu João pulou para motorista. Tinha 19 anos. A primeira "carta para dirigir", não esconde seu João, foi "arranjada" pelo fazendeiro Chicuta Pedrosa, para quem trabalhou de "chofer". "Naquela época ele era coronel, né? Até o meu nome ele assinou, porque eu nunca entrei numa escola", confessa. Assinar o nome, aliás, foi a única coisa que ele aprendeu. Ainda hoje não sabe a diferença da letra A para a B. Mas sabe da vida. E muito. "Não leio as placas, mas conheço tudo desse estado. Basta gravar a estrada, o mato, a rua, o muro, a cara das pessoas. Só errei uma vez, fui bater em Garanhuns em vez de Canhotinho, porque me confiei na leitura do passageiro, que só depois de rodar bem muito me disse que também era analfabeto". Os 11 filhos (sendo oito ainda vivos), ao contrário dele, foram à escola. "Eu não tinha tempo de visitar a família, quanto mais de aprender. E olhe que a minha esposa era professora". As cartas de amor do casal quem escrevia e lia para seu João era um amigo "bombeiro".

Sem distinção - Seu João não deixa um passageiro carregar mala nem peso. Acha que é obrigação do taxista - ou um costume dos tempos de carregador na estação de trem. Faz viagem com muita gente famosa. Elba Ramalho, Genival Lacerda e o jogador de futebol Rivaldo são os que a memória gravou. Mas, para ele, tanto faz se é artista, político, jogador de futebol ou anônimo. "Eu não trato com diferença porque também não quero que façam comigo". Já viu muita coisa dentro do carro. Tem um repertório sem fim de histórias para contar. "Já teve muita briga, muito rala e rola e mulher deixando o carro no estacionamento do aeroporto para encontrar o outro". Mas, para ele, tanto faz falar ou não. Seu João está ali para trabalhar. A vida toda. "Sustentei os meus filhos e agora ajudo a criar os meus 30 netos e 30 bisnetos com o táxi". Ele mora com um dos dois filhos que também são taxistas, a nora e duas crianças, em Prazeres. O apelido "Doido" foi dado pelos colegas porque topa todas. Um dia desses, fez uma corrida até Afogados da Ingazeira, a 386 quilômetros do Recife, para ganhar R$ 600. "Relampeava mais do que tudo, mas eu precisava".

Se a primeira "carta de dirigir" foi arranjada pelo coronel, a última custou um pouquinho ao seu João. "Da última vez que fui renovar, em 2006, o médico ficou achando ruim. Me disse para não dirigir mais. Aí, eu falei: doutor, eu tenho a carta há 57 anos. Olhe o meu prontuário. Veja se eu já provoquei algum acidente. Ou o senhor bota ela (a secretária) para encher a ficha (do Detran) ou eu volto para a enxada". Seu João nunca pensou em ser outra coisa na vida. Quem viaja no táxi dele, entende direitinho por quê.

(texto publicado no Diario de Pernambuco, em 25 de julho de 2008).

sábado, 12 de julho de 2008

Um certo Tchaikovsky


(texto publicado no Diario de Pernambuco, em 11 de junho de 2008).

Foi assim que Tchaikovsky Johannsen Adler Pryce Jackman Faier Ludwin Zolman Hunter Lins veio parar nesta página de jornal. Um curioso se interessou pela combinação de nove nomes e somente um sobrenome, teve acesso ao prontuário do Instituto de Identificação Tavares Buril (IITB) - órgão da Secretaria de Defesa Social que emitiu a carteira de identidade daquele cidadão - copiou o documento e distribuiu e-mails apresentando como se fosse piada, coisa de circo, de outro mundo. Mas, a mesma internet usada para espalhar o inusitado também deu outras pistas do dono do nome, um menino de 17 anos, admirador de música clássica, regente de coral, autodidata em alemão, arrimo da família e morador da Mangueira, bairro simples na Zona Oeste do Recife. E essa história, essa sim, vale a pena distribuir em e-mails e contar nessa página.

A ópera do nome
O pai de Tchaikovsky, Ricardo, precisou procurar a Justiça para fazer a certidão de nascimento do filho com os nove nomes e somente um sobrenome. "O primeiro cartório não quis fazer o registro de jeito nenhum. O segundo me pediu para procurar um juiz e trazer uma autorização por escrito. Foi o que eu fiz. O juiz achou esquisito um nome tão grande, todo estrangeiro, me falou da dificuldade de tirar outros documentos, mas eu não desisti. Eu tinha certeza que estava fazendo a coisa certa", recorda o pai. Ricardo tinha certeza, apesar do detalhe: quando ele procurou a Justiça, apresentou 19, em vez de nove nomes próprios. O juiz fez Ricardo abrir mão da metade.
A carteira de identidade e o CPF contam outra parte da ópera que é a vida desse menino, desde o seu começo. "A gente passou uma manhã e uma tarde todinha no Instituto Tavares Buril porque o nome completo não cabia na cédula de identidade. Foi preciso esperar o programador de informática dinumuir o tamanho das letras no computador, para entrar o nome todo. Por lei, nenhum nome pode ser abreviado no RG ou CPF. Não sei como a Receita Federal deixou passar no CPF três nomes (Pryce, Zolman e Hunter) somente com as iniciais", estranha Ricardo. Tchaikovsky aprendeu a ler e a escrever em casa, com a mãe, Jane. Depois do alfabeto, ela ensinou o menino a fazer o próprio nome, completo. "Nesse tempo a gente teve que tirar ele da escola porque, de tanto ser repreendido por uma professora, ele ficou traumatizado. Não queria mais ir para escola alguma. Então, se eu estava desempregada, podia ficar com ele, educando e trabalhando a cabecinha dele. E eu fui aos poucos tirando o medo dele", diz Jane. Tchaikovsky não levou mais do que dois meses para fazer o próprio nome, letra por letra. "Ele nunca estranhou o tamanho do nome. Sempre achou normal. Porque tudo mais na vida dele sempre foi normal. Ele tem uma família que se esforça e tem amor".
O menino continou levando na boa. No colégio onde faz o terceiro ano do ensino médio, ele é Tchaikovsky ou Lins, na lista de chamada. No trabalho como estagiário da Celpe -, mesmo com muita timidez - tal como o famoso compositor russo de música clássica Tchaikovsky - ainda explica a origem do nome aos colegas. "Eu preciso ir a muitos andares do prédio. Quando eu entro numa sala e me apresento, tenho que repetir. Aí, junta todo mundo do setor para ouvir eu explicar os nomes. Muita gente acha interessante", conta Tchaikovsky, chamado em casa e pelos colegas de "Tchai".
E o que "Tchai" explica é o seguinte: "Eu não era para ter nascido. Então, como filho único que eu seria, meus pais quiseram me dar um nome especial. E a música clássica é uma coisa especial na nossa família. Minha mãe e meu pai se apaixonaram através da música clássica. Então, eles escolheram o meu nome nos discos de vinil que tinham em casa. Tchaikovsky foi de Pyotr Ilyich Tchaikovsky, um dos mais importantes compositores russos. Johannsen veio de Arne Johannsen, um regente alemão. O Pryce foi de outro regente, Yuri Pryce. Ludwin deveria ser do mestre alemãoLudwig van Beethoven, mas saiu errado no registro". Somente Zolman e Lins não têm origem na música. O primeiro, segundo "Tchai", é bíblico. "Do hebráico significa homem gerreiro", ensina. Lins é o sobrenome da família. "Se eu tivesse nascido menina, seria difícil. Porque existem poucas musicistas clássicas", acrescenta.

Do vinil ao celular
Os discos de vinil que inspiraram o nome do menino estão guardados como relíquias na estante da sala e sobre guarda-roupas. Um dos mais valiosos é do O Lago dos Cisnes, primeiro balé com orquestra do mundo, criado justamente pelo russo Tchaikovsky e encenado nos quatro cantos do planeta, desde 1877 - quando estreou no Teatro de Bolshoi, em Moscou, na Rússia. Mas a radiola toca também Antonio Lucio Vivaldi, Johann Sebastian Bach e Wolfgang Amadeus Mozart. A família justifica o gosto, em coro: "Traz calma, serenidade. Faz a gente viajar". Samba, funk, brega, nada mais entra em casa. As óperas e outras obras que o pai baixa no computador ficam salvas em CDs e no celular de Tchaikovsky. O aparelho é também tocador de música. Ele dorme e acorda ouvindo aquilo que já conheceu no vinil. Dorme e acorda sonhando em ser um daqueles compositores, maestros ou regentes que estão nas capas dos discos. O parente musicista mais próximo da família Lins é um bisavô do menino, que foi maestro de bandas e fanfarras no município de Belo Jardim, no Agreste de Pernambuco, a 187 quilômetros do Recife.

Solista do próprio destino
Do computador instalado no corredor da casa, os pais de Tchaikovsky tiram as partituras para ensaiar. Ricardo e Jane são regentes de três corais de igreja. O menino vai no mesmo caminho. Mas sozinho. O solo de Tchaikovsky, da Mangueira, está sendo preparado por ele mesmo. "Nunca obrigamos ele a gostar de nada. Tanto, que só agora ele está se dedicando por vontade própria", diz a mãe. Enquanto não presta vestibular para física ou química no final deste ano - não estranhe a opção pelas ciências exatas porque música também é matemática, é cálculo - vai aprendendo a solfejar, ou, a distribuir as vozes, dar os tons, valores e a afinação de cada uma. Para entender melhor as partituras, escritas principalmente em alemão, ele descobre o idioma. Tirou da internet as apostilas e o áudio de um curso gratuito. "A Alemanha é um berço da música clássica. Eu sempre me transporto para lá quando estou deitado na cama, ouvindo no celular". Um dos desejos de Tchaikovsky é conseguir uma bolsa de estudo aqui mesmo, no Recife, para aprimorar o conhecimento em alemão.
Neste mês, ele vai se inscrever no Conservatório Pernambucano de Música. O pai ensina o básico que ele precisa saber para passar pelos testes rigorosos. O curso "intensivo" se dá no programa de computador que imita um órgão - porque o de verdade está queimado, encostado no quarto do menino. "O piano é o instrumento mais completo. E eu desejo estudar muito piano", revela o aprendiz. Tchaikovsky também já está escolhendo o repertório que vai apresentar no concurso de música promovido pela empresa onde ele trabalha, este ano.

O primeiro ato
Mas a história de Tchaikovsky Johannsen Adler Pryce Jackman Faier Ludwin Zolman Hunter Lins, que um dia foi resumida a uma piada na internet, nem era para ter existido. Nem era para estar aqui, nessa página de jornal. A mãe, Jane Silva, e o pai, Ricardo Lins, tinham problemas de saúde e financeiros que impediam a gravidez e a criação de um filho. Mas ela, principalmente, não abria mão da maternidade. E, quase como num milagre, Jane conta, engravidou, depois de dois anos de casada. O sexo do bebê só foi descoberto pelo casal na hora parto. Jane e Ricardo queriam e pressentiam que seria menino mesmo. E desejavam tanto, que nem em nome de menina os dois pensaram. Os nove nomes próprios e somente um sobrenome foram o jeito de marcar aquele acontecimento de 11 de janeiro de 1991. O casal descobriu depois que não podia ter mais filhos.
Tchaicovsky Lins, que nem era para ter nascido, hoje ajuda a criar a família, digamos assim. Trabalha como auxiliar administrativo do departamento jurídico da Celpe, desde março passado. Pelas quatro horas de expediente, de segunda a sexta-feira, recebe a remuneração de R$ 415 e passagens de ônibus. Também terá direito ao 13º salário proporcional ao tempo de trabalho. O início dessa experiência, sorte de pouco jovens brasileiros, está escrito justamente na internet. No site de pesquisa Google, o nome completo do menino aparece na lista de alunos dos cursos de capacitação do programa federal Primeiro Emprego, criado em 2002 para colocar jovens carentes no mercado de trabalho. "Fiquei sabendo desse programa pelo jornal. Levei logo o currículo do meu filho à Agência do Trabalho, na Rua da Aurora, no centro da cidade. Depois de uns oito meses recebi um telefonema do Instituto Empreender, dizendo que Tchaikovsky tinha sido escolhido para participar de um curso de auxiliar administrativo com o Projeto Enter Jovem. Esse instituto é que banca as aulas, junto com o governo do estado. Mas aí, começou outro drama. Como ele ia estudar no colégio e no programa, sea gente não tinha carro nem dinheiro para as passagens?", lembra Jane.
De bicicleta, claro, único meio de transporte da família. Foi o pai quem levou Tchaikovsky na garupa para o Colégio Ferroviário, no bairro de Afogados, onde fez o curso de capacitação, no Bongi, e daí para casa, na Mangueira. A "magrela" foi um presente que o casal ganhou de uma congregação por ajudar a criar e a reger o coral de que faz parte - a família é evangélica. O esforço nos três turnos do dia valeu - e vale - tanto, que Tchaikovsky foi eleito o representante da turma e entrou no trabalho antes mesmo do curso acabar. O menino continua estudando, fazendo uma espealização de auxiliar administrativo no Senac. "A gente tem dois medos. Um é que ele vá para o Exército. O outro, que ele não seja efetivado na Celpe, depois que terminar o estágio, em dezembro que vem", confessa a mãe.Ricardo é técnico em contabilidade e Jane, auxiliar de enfermagem. Ao contrário do filho, tiveram que largar os estudos no ensino médio para se sustentar. Hoje, nem estudos nem trabalho. Há seis anos, os dois estão desempregados. São remunerados quando os "irmãos da igreja podem contribuir" - daí porque bicicleta fica guardada na sala de estar da casa de dois cômodos.

A música de "Tchai"
Curiosamente, o primeiro contato do famoso compositor Tchaikovsky com a música foi aos cinco anos de idade. A mãe dele usou um órgão mecânico velho que havia em casa para ensinar árias da moda. A vontade da família era que o menino russo fosse advogado. Perto dos 20 anos, porém, ele negou qualquer vocação para o direito e foi estudar música no Conservatório de São Petersburgo, na Rússia. Qualquer pessoa nessa idade é considerada, pelos especialistas, velha demais para estudar música. E ele não fugiu à regra. Aos 21 anos, apesar de conhecer e gostar de Mozart, o jovem não ouvia nem tinha a menor idéia de quantas sinfonias Beethoven havia escrito. Mas ele sabia, assim como Tchaikovsky da Mangueira, o que a música poderia lhe dar. E sabia tanto, que antes de morrer, aos 53 anos, já havia criado balés, sinfonias, óperas e concertos executados até hoje, no mundo inteiro. Costumava dizer que "música é vida interior. E quem tem vida interior não está sozinho". E isso, certamente, Tchaikovsky Johannsen Adler Pryce Jackman Faier Ludwin Zolman Hunter Lins, aos 17 anos, já aprendeu, já pode até ensinar.
Foto: Juliana Leitão

domingo, 29 de junho de 2008

Av. Agamenon Magalhães, sem número. Sem nada

Esta é a história de um poeta, um artesão e um dedicado namorado. Os três dividem o mesmo lar: a rampa do Hospital da Restauração.

Erinaldo, Lourival e Gilberto moram juntos. O endereço é um dos mais freqüentados do Recife: Avenida Agamenon Magalhães, sem número, Derby. Todos os dias levantam com o sol e saem para ganhar a vida, com um cafezinho no estômago. São donos do próprio negócio e o ponto comercial pode ser em qualquer esquina da cidade. Erinaldo é poeta cuja obra cabe numa sacola de ráfia desgastada. "Arte incompreendida" que carrega debaixo do braço e alimenta seu pensamento. As latinhas que seu Sardinha, apelido de Lourival, transforma são brinquedo para a criança de sítio que um dia ele foi. "Deixei a casa dos meus pais quando tinha 10 anos", lembra o artesão. Gilberto, o mais velho deles, sobrevive com a "missão que Deus deixou": cuidar da namorada que, segundo ele, é portadora do HIV.

Também todas as noites os três homens voltam juntos para a casa, sempre cheia de hóspedes e visitantes, 24 horas. Dormir é a única coisa que resta para eles. É o possível num lugar que não tem teto nem paredes. O chão se inclina em rampa. Cozinha, para que, se comida só de vez em quando? Erinaldo, Lourival e Gilberto dormem e acordam no Hospital da Restauração, porque têm medo das ruas. A violência já lhes mostrou a cara nas marquises, calçadas e viadutos.

(continua na postagem abaixo)