terça-feira, 24 de março de 2009

O meu vizinho espigão


Meu novo vizinho é um espigão. Aliás, um não. Dois. Estão mudando a paisagem da vizinhança aceleradamente. As fotos acima eu fiz da minha janela. O intervalo entre uma e outra foi 40 dias. O suficiente para tirar o resto da vista do mar, que eu ganhava de presente diariamente, quando entrava pela porta da frente da minha casa. Eu até conseguia ver quando a maré estava cheia e seca. Agora, um antes e depois duro de aceitar. Pensei em registrar o passo a passo da construção, mas desisti de me torturar. E antes que alguém pergunte onde moro, se também não sou uma vizinha indesejável, digo que vivo no 3º andar de um prédio com quatro pavimentos. As próximas fotos do meu vizinho da frente registrariam 21 andares. 

A sabedoria do ovo. Ou do povo.

Eu era criança pequena de Setúbal quando vi cascas de ovos em cima de cercas em madeira. Para mim, menina da cidade, do shopping e do playground, parecia só enfeite nas casas do interior. Deixa estar que cresci e soube de outro uso do negócio que não apenas decorativo. Infelizmente não lembro de quem me contou, mas foi especial saber que as cascas, quando não viram adubo de plantas, servem para aparar a chuva. A água não escorre por dentro da talisca e assim o pau não apodrece. Simples. Sublime. Sábio.

Ps: a foto acima foi feita num restaurante no bairro de Casa Forte. Mas lembro - disso eu lembro - de ver cercas originais pertinho do Recife, na rodovia que perpassa o distrito de Nossa Senhora do Ó (caminho para a praia de Porto de Galinhas), em Ipojuca.

A língua das mariposas

Aos poucos vou desmanchando a proposta inicial desse blog de só falar da vida dos outros. Aqui mesmo quero falar da minha. De um filme que vi nessa semana, chamado A Língua das Mariposas. Entre vários momentos sublimes do título espanhol (La Lengua de Las Mariposas, 2005) dirigido por José Luis Cuerda, um colou mais no meu juízo. Foi exatamente a história que dá nome ao filme. Eu não sabia - ou não lembrava das aulas de ciências - que as mariposas têm a língua em espiral, ou, como ensina o "maestro" Don Gregório ao menino Moncho na mínima sala de aula do vilarejo incrustado na Guerra Civil espanhola, têm a tromba em espiral. É assim porque se enrola e desenrola para alcançar o néctar das flores. E ninguém consegue vê-la. Imagino que seja uma simbologia riquíssima para a psicanálise. Aquela coisa do desejo oculto, de uma situação em segredo, sei lá. O espiral, para mim, parece mesmo é com o pensamento da gente. Ora está para fora, ora está para dentro de um jeito que nem o mais poderoso microscópio do mundo pode captar.

Ps: o menino Moncho também aprende que o tilonorrico, pássaro australiano, enfeita o ninho com orquídea para atrair a fêmea.

quarta-feira, 11 de março de 2009

A casinha de adaptação

Levei um soco num dia desses. Eu saía da Funase (antiga Fundac) do Cabo, a 47 quilômetros do Recife, quando ouvi alguém dizer: "ei, tia, chega aqui". De longe eu só via mãos. A voz vinha de uma casinha rústica nos fundos da unidade sócioeducativa. Era gradeada e a porta tinha no máximo 50 centímetros de largura. Cheguei perto curiosa, deixando para trás a minha pauta, que era reparar na relação das mães e companheiras no processo de ressocialização de adolescentes e jovens. "Eita, ela é emo! A senhora deve gostar de NX Zero e Fresno, né?". Foi assim que começou a minha conversa com Raquele e Karla. Na verdade, dois jovens. Dois meninos. Um de 17 e outro de 18 anos. Assim que me expliquei a eles, falando que não era uma "emo", fui descobrindo parte da história deles. Estavam na Funase porque haviam brigado com um cliente que não pagou um programa. Ambos faziam ponto na calçada de um hotel de Boa Viagem. Estavam na casinha ou na cela isolada porque precisavam de "adaptação". Adaptação, naquele lugar, significa tirar o esmalte das unhas (como aparece na foto), pelar as cabeças, usar shorts e camisas de times de futebol, falar grosso e andar "feito homem". Imaginar a confusão na cabeça desses dois já foi pesado para mim. Existem cerca de outros 300 reeducandos na Funase do Cabo. A maioria segue à risca uma lei, digamos, própria: não frequentar o pátio sem camisa. Pensar no que aconteceria com aqueles dois, quando fora da casinha de adaptação, me deu uma agonia danada. Saí da Funase sem coragem de checar o que aconteceu depois da conversa.

O jumento sabido

Mais sabido do que o jumento dessa foto é o bicho homem que realiza a história de levar literatura boa para o interior de Pernambuco. Dá gosto a idéia de fazer bibliotecas ambulantes no caçuá do burrico que já salvou muita gente da seca. A cidade de Amaraji, na Zona da Mata Sul, vai receber o jumento carregado com 100 obras - inclusive cordéis - neste domingo. Haverá contação de histórias e dramatização de textos ao ar livre. Um jeito lúdico e sabido de aproximar a gente da leitura, né? Tomara que vingue. Tomara que o jumento carregue a literatura boa para mais lugares, mais crianças, jovens e adultos. A Fundarpe (Fundação do Patrimônio Histórico de Artístico de Pernambuco), que apóia o projeto junto a prefeituras, batizou a história de Livros Andantes. Eu chamaria também de Jumento Sabido.

quarta-feira, 4 de março de 2009

Poeta em concreto

Vi o menino examinando a calça da estátua do poeta Joaquim Cardozo, instalada na ponte Maurício de Nassau, no Centro do Recife. Parecia desconfiado. Mexia de um lado para outro. De certa forma, testava a realidade. Será que aprendeu na escola sobre o escritor? Feita em concreto polido, a imagem recostada na sacada reproduz a silhueta do poeta que publicou o primeiro livro somente aos 50 anos de idade e morreu sem ter o reconhecimento do grande público (se é que ele queria isso). A crítica hoje se refere a ele como um dos maiores escritores da língua portuguesa no século XX. Eis um dos poemas feitos por ele. Encontrei no http://www.joaquimcardozo.com/

Poema do amor sem exagero
Eu não te quero aqui por muitos anos
Nem por muitos meses ou semanas,
Nem mesmo desejo que passes no meu leito
As horas extensas de uma noite.
Para que tanto Corpo!
Mas ficaria contente se me desses
Por instantes apenas e bastantes
A nudez longínqua e de pérola
Do teu corpo de nuvem.

Saiu do mangue, virou gabiru


O flagrante foi feito por Patricia Melo, na Rua dos Navegantes, em Boa Viagem. É uma das principais vias do bairro de IPTU altíssimo. Talvez um dos poucos lugares que ainda guardam uma certa poesia nas pedras portuguesas de algumas calçadas e nas amendoeiras. O homem agachado nas fotos, à beira da vala, tentava desentupir o esgoto. Puxava os restos com as mãos, debaixo da chuva. Descia junto com a água a dignidade do cidadão. Deixo que os poetas Manuel Bandeira e Chico Science falem por mim.
Vi ontem um bicho,
na imundície do pátio
catando comida entre os detritos.
Quando achava alguma coisa,
não examinava nem cheirava: engolia com voracidade.
O bicho não era um cão,
não era um gato, não era um rato.
O bicho, meu Deus, era um homem.
(Manuel Bandeira, 1940)
Vi um aratu pra lá e pra cá
Vi um caranguejo andando pro sul
Saiu do mangue, virou gabiru
Oh Josué, eu nunca vi tamanha desgraça
Quanto mais miséria tem mais urubu ameaça.
(Da lama ao caos, Chico Science, 1996)
Estou enfiado na lama
É um bairro sujo
Onde os urubus têm casas
E eu não tenho asas
Mas estou aqui em minha casa
Onde os urubus têm asas
Vou pintando, segurando as paredes do mangue do meu quintal
Manguetown
Andando por entre os becos
Andando em coletivos
Ninguém foge ao cheiro sujo
Da lama da Manguetown
Andando por entre becos
Andando em coletivos
Ninguém foge à vida suja dos dias da Manguetown.
(Manguetown, Chico Science e Lúcio Maia, 1996)