segunda-feira, 18 de janeiro de 2010

Haiti, futuro Timor-Leste?

Neste modesto blog, dei lugar a vozes dissonantes da maioria das declarções sobre a Missão das Nações Unidas de Estabilização no Haiti (Minustah). Vozes que acreditam em um novo Haiti, mas não de uma nova pátria descaracteriza. Vozes que pedem menos armas, menos repressão e mais escolas e hospitais. Vozes que acreditam num futuro sustentável e não de mentirinha. Soberano e não dominado. 
Hoje, o espaço é para um general do Exército. Um homem que segurou armas, enfrentou gangues, cumpriu ordens da ONU. Um homem que, de certa forma, dá a cara do Exército à tapa, quando admite que a missão iniciada em 2004 falha com haitianos ao fazê-los sonhar com um novo Haiti. Sonhar não basta.


O presente do Haiti está na cara do mundo: corpos, sobreviventes, manisfestações solidárias e declarações oficiais de países ricos e em desenvolvimento. O futuro do país caribenho, que já viu e ouviu promessas, está lá trás. Está no passado de outro país pobre. Numa história marcada também pela instabilidade política e pela violência. O general do Exército e comandante militar do Nordeste, Américo Salvador de Oliveira avalia que um novo (e sustentável) Haiti só será possível com a intervenção da ONU. "Se as Nações Unidas não fizerem como no Timor-Leste, só um milagre", declarou o general, que recebeu o comando da região este ano. Servindo no Nordeste pela primeira vez, o comandante nascido em Santos (SP) conversou com a reportagem sobre a "terra prometida" ao Haiti, os bastidores do trabalho das tropas brasileiras no país, futebol e a Copa do Mundo de 2014 no Brasil.

Timor-Leste, o exemplo
    Em maio de 2002, o Timor-Leste tornou-se um país independente. O processo de cerca de três anos se deu com a ajuda das Nações Unidas. Com uma história marcada pela luta pela soberania e por guerras civis, o país recebeu a primeira força de paz em 1999. O Exército brasileiro fez e faz parte das organizações que ajudam o país em seu caminho para a plena soberania e paz duradoura. "Não adianta colocar todo o dinheiro do mundo nas mãos dos haitianos. Eles não saberão o que fazer", observa o general Salvador, que ainda guarda a boina azul usada no Haiti e que identifica missões humanitárias da ONU. "A intervenção que aconteceu no Timor Leste não foi de dominação. Não tirou as características da pátria. O brasileiro Sérgio Vieira de Mello foi quem colocou os recursos onde realmente o país precisava". Diplomata, Vieira de Mello exerceu o cargo de administrador de transição da ONU no Timor-Leste. Por essa e outras atuações, recebeu a nomeação de Alto Comissário das Nações Unidas. Em 2003, morreu em Bagdá, vítima de atentado atribuído à Al-Qaeda contra a sede local da ONU.

2004, a promessa
    Os planos para o Haiti eram muitos em 2004, quando a Missão das Nações Unidas para a Estabilização do Haiti (Minustah) chegou ao país. Criar condições para o exercício da democracia era um deles. Com esse viria a garantia do direito à educação, saúde, moradia e serviços básicos, como de água tratada. Há críticos contra e a favor do grande projeto com o que o mundo se comprometeu. Há quem apoie e quem desacredite na Minustah. "Eu também reclamo que faltam escolas e hospitais. Quem fala negativamente da Minustah tem razão, em parte. O problema, eu vejo, está nas promessas, nos planos que não aconteceram. Os haitianos só veem soldados nas ruas", observa. "Existem muitas propostas prontas, mas elas precisam de recursos. A comunidade internacional fez promessas, mas esse dinheiro não chega. Então, a missão como um todo fica só com a cara de armas ou de repressão da polícia local", analisa o general Salvador.

Para o comandante militar do Nordeste, a parte "bem feita" da missão está com o Brasil. "Nós estamos fazendo mais do que fomos destacados para fazer, que é liderar o componente militar da Minustah, oferecer segurança ao país, coordenando os 17 contingentes de militares do mundo inteiro no Haiti. Eu mesmo, que vivi os seis primeiros meses da missão, atuei na questão da assistência social, reconstruindo uma escola e chamada de Duque de Caxias; construindo postos de saúde; criando uma praça pública em Cité du Soleil, uma das comunidades mais miseráveis; e perfurando poços", diz o general.

Brasileiros, o bastidor
   O quartel das tropas brasileiras não foi atingido pelo terremoto. Por isso mesmo, as "baixas" ou mortes no efetivo foram menores do que em contingentes de outros países, como Canadá. Até o fechamento desta edição, às 22h, eram 17 as vítimas militares do Brasil. "Quando nós chegamos em 2004, o abrigamento era improvisado. Não tínhamos ainda apoio da ONU e ficávamos acantonados no aeroporto, em um galpão e barracas. Depois, permanecemos em uma universidade em construção, até chegarmos nas instalações semifixas. Chegamos a ter três canais de televisão", detalha o comandante Salvador. Apesar do aparato, o general não conseguiu contato com o "amigo particular" e comandante do atual contingente brasileiro no Haiti, o general Floriano Peixoto.

    No próximo dia 28, a tropa brasileira será totalmente renovada. Cerca de mais 1,3 mil militares irão trabalhar em um cenário que talvez sequer imaginem. "Brasileiro gosta de ajudar sem qualquer retorno. Os outros países às vezes têm até mais condições, mas não têm sensibilidade com nós", afirma o general Salvador, que faz questão de se apresentar usando a farda camuflada. "É a minha preferida. De combate. Foi uma dessa que usei no Haiti, de onde não saí um dia sequer naqueles seis meses", conta.
   Para entrar no Haiti, o militar brasileiro precisa passar por uma preparação de seis meses (o mesmo tempo de permanência da cada contingente em missão). Ser voluntário é o primeiro requisito, mas não o único. "Nós trabalhamos com situações, com problemas que o militar vai encontrar no lugar. Fazemos inúmeros testes, inclusive da saúde psicológica do voluntário. A mesma coisa na desmobilização, na volta da missão. Tentamos desfazer possíveis traumas que afetem a família do militar e sua carreira", garante o comandante.
    Em toda missão considerada de paz surgem situações traumatizantes, afirma o general Salvador. "É comum haver o aproveitamento da miséria. A exploração. Há casos em que se acusa o militar de abuso à uma mulher, para requerer indenização, por exemplo", conta o comandante. "Nós já recebemos denúncias sobre isso, mas nada foi provado", afirma. Uma traição também marcou a memória do general Salvador. "A polícia de lá é corrupta e violenta. O diretor da Polícia Nacional do Haiti, homem de confiança para nós, foi o mentor do sequestro da dona do Hotel Montana. Aconteceu na época do nosso 3º contingente", relembra.

Futebol, o símbolo
    A violência deu uma trégua ao Haiti no dia 18 deagosto de 2004. "O país parou para ver a Seleção do Brasil. Eu fui um dos eram contra o jogo. Tínhamos acabado de chegar. O risco era muito grande. Ainda não tínhamos dominado a segurança", conta o general. "Mas o comportamento dos haitianos, inclusive das gangues, foi de calma. O que nos provou que a índole do povo é pacífica", rememora o comandante. "A organização vendeu o dobro de ingressos em relação à capacidade dos lugares no estádio. Fiquei imaginando no que daria isso no Brasil", compara o general, para quem o recrudecimento das gangues pode ser mais um desafio à missão. "O presídio do Haiti foi totalmente afetado pelo terremoto. Quem não morreu, foi solto. Quem estava nas delegacias também. Mas acredito que essas lideranças serão presas novamente. O problema é não ter onde prender", avalia.
    Nascido em Santos (SP), o general Salvador é torcedor da Seleção Brasileira. "Eu fui Corinthians. Mas desisti. De maneira geral, o futebol do Brasil só tem mercenário", critica o comandante. Ao ser questionado sobre a possibilidade do Exército atuar na segurança do Brasil durante a Copa do Mundo de 2014, o oficial é enfático: "o governador teria que ser convocado. Antes disso, o governador teria que declarar que a segurança dele é insuficiente. Que administrador gosta disso?", devolve o general. O Comando Militar do Nordeste compreende nove estados, em três grandes comandos: 6ª Região Militar (BA e SE); 7ª Região Militar - 7ª Divisão de Exército (AL, PE, PB e RN) e 10ª Região Militar (CE, PI e MA), com sedes, respectivamente, nas cidades de Salvador, Recife e Fortaleza. 



Texto publicado no Diario de Pernambuco. http://www.diariodepernambuco.com.br/2010/01/19/mundo4_0.asp

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