quinta-feira, 18 de dezembro de 2008
Em nome do pai, do filho e da alfabetizacão
- "O senhor é o dono dessa Kombi?"
- "Sou eu o dono sim. Por que a senhora tá perguntando isso?"
- "Nada demais não".
- "Foi, eu comprei com o dinheiro das contas que eu peguei quando deixei de trabalhar num engenho no interior".
- "E o senhor sabe ler?"
- "Sei".
- "E o que tá escrito no vidro da Kombi?", falou Tânia, apontando para o adesivo "Deus é fiel".
- "Jesus pode mudar a sua vida".
- "Não é isso não. O senhor sabe escrever o seu nome?"
- "Mais ou menos".
- "Como foi que o senhor tirou a carteira de motorista?"
- "Eu não tirei. Eu trabalho sem ela. Mas a senhora não vai botar isso aí na matéria não, né?"
Ps: antes que o leitor do blog sinta falta da cedilha e me encaminhe ao EJA - como mereceria o motorista de Ipojuca - devo dizer que ainda não aprendi esse comando no teclado em inglês. Alguém se habilita a me dar essa aula?
Garota interrompida
O Ministério da Saúde adverte: Saci Pererê não é bom menino
quarta-feira, 3 de dezembro de 2008
O Rap do Menino Invisível

Atropelada na rua, a mãe nunca acordou.
E na memória do menino miúdo ficou.
Era como bicho solto aquele menino Pixote.
Foi aprender na escola e ensinar no Hip Hop.
Dançou break na rua, cantou rap na rua, pintou grafite na rua.
Fez leitura nos livros, se guiou nos mestres. Luther King, Muhammed Ali, Malcom X.
Se formar na faculdade foi outra grande vitória.
De camelô pra funcionário, de menino pra homem.
Ele escapou daquela sina, mas não esquece do ontem.
Quer conhecer sua raiz, seu sobrenome.
Quer viajar pro Ceará.
Na periferia de si mesmo

"Se eu não acreditasse na minha própria mãe, ia acreditar em quem? Só era a gente no mundo". A pergunta foi uma resposta à outra, feita na entrevista. Sérgio lembra apenas de algumas coisas que a mãe repassou sobre a vida deles dois. Ela falou que foi expulsa de casa, no Ceará, porque engravidou. Contou que abortou, que fugiu para o Recife. Disse que sabia falar três idiomas, que viajou no mundo e foi torturada porque era militante política. Confessou que Sérgio nasceu de um "romance com um gringo americano que veio num navio ao Recife, partiu e nunca mais voltou". O nome dela: Sara Cavalcante Matos. "Ela era inteligente, politizada demais".
Sara era prostituta. "Ela não me falava, mas eu via que ela saía toda a noite para o Porto do Recife", lembra Sérgio. "Quando ela voltava com dinheiro para casa, ela me arrumava todo. Quando não, eu apanhava. Acho que ela descontava a dor e a revolta do mundo em mim". Era 15 de novembro de 1982 - data gravada a ferro quente na memória dele -, quando Sara foi atropelada, em frente ao porto. "Eu fiquei esperando em casa. Mas ela nunca mais voltou". O único documento familiar que restou nas mãos de Sérgio foi o registro de nascimento da mãe. Pelo papel, ela nasceu em 25 de dezembro de 1947, na cidade de Sobral, no Ceará. Era filha de Zilka e neta de Emílio e Zuleika.
Sara era negra. Os olhos verdes de Sérgio, diz ele, são herança do pai que ele não conheceu. São também os olhos de gato e muitas (sobre)vidas. "Eu era bonitinho, afilado, todo mundo queria ficar comigo, depois que Sara morreu. Eu costumo dizer que fui salvo pelos olhos verdes e pela pele branca. Acho que se eu fosse negro, teria menos chance. Mas, de verdade, o que me salvou foi a solidariedade das comunidades carentes", observa Sérgio. E o menino passou de mão em mão, até os 21 anos de idade, quando achou que já podia se sustentar. Trabalhou de camelô, vendendo pilha, "muamba" e veneno de rato. Tinha ponto na Rua da Praia, Rua do Rangel e Beco do Veado, no Centro da cidade. "Só comia se tivesse dinheiro. Foi minha primeira profissão, onde aprendi a encarar as pessoas". Mas as pessoas não viam Sérgio.
O futuro sociólogo se fez menos invisível quando entrou numa sala de aulas. "A única coisa boa no tempo sem casa foi uma família me colocar na escola, quando eu já tinha 10 anos", fala. Sérgio morou no Coque, Rio Doce, UR 2, Vasco da Gama. No Ibura, na escola estadual Lagoa Encantada, ele fez até o 3º ano. "Difícil não cair no tráfico. Até hoje vivo tenso, rude, com medo de passar fome de novo".
"Tentei passar logo no vestibular e não consegui. Mas eu não podia desistir. Não tinha alternativa. Aí, estudei mais um ano com o que tinha, português, literatura e história", relembra. "Escolhi Sociologia porque conheci muita gente na rua que se preocupava com os movimentos sociais do país". Sérgio se formou na UFRPE, em 2003, e prometeu aosprofessores que "até os 50 anos de idade" terá o doutorado. Ficou conhecido por levar a cultura de rua à academia e vice-versa. Daí o codinome Sociólogo da Favela. "De cara, as pessoas pensam que eu faço apologia à favela. Se me conhecem, entendem que a favela é a minha história de vida. Tudo que ganhei veio das ruas".
Adolescente, Sérgio imitava o grupo Menudo com outros jovens. "A gente dançava nos clube e ganhava uns trocados. Foi quando eu percebi que a arte seria um caminho para não me perder", conta. "Nessa época, o break era muito forte no Brasil. Fui me encontrando nessa cena, criando grupos e um espaço para o hip hop na cidade". Com a dança, a música e o grafite, os pilares do movimento cultural, Sérgio hoje ensina como se constrói um cidadão. Está à frente da Associação Metropolitana do Hip Hop em Pernambuco, único filho que botou no mundo. A lida com as questões da periferia rendeu a Sérgio uma profissão na Secretaria Estadual de Desenvolvimento Social e Direitos Humanos. É coordenador de cultura. Cria projetos de educação para jovens de 16 a 24 anos, em situação de vulnerabilidade social. Jovens que poderiam repetir a história dele.
Falta ao Sociólogo da Favela fazer par com ele mesmo. Falta a casa. Falta a família. Sérgio mora na Avenida Dantas Barreto, junto com o amigo rapper Tiger. "Enquanto não tiver meu espaço, vou achar que continuo perambulando, como quando era menino. Ainda vou encontrar nem que seja um parente em Sobral. É um buraco existencial. Um jeito de reconhecer a minha humanidade". Sérgio quer viajar para o Ceará. Quer fazer outra rima com o vazio, refletido nos olhos. Os olhos verdes que já foram a redenção e hoje são solidão. Quer sair da periferia dele mesmo.
domingo, 5 de outubro de 2008
Debaixo dos urubus
A mãe e o medo
A família de Andréa Mercês, de 33 anos de idade, é uma das 219 do Morro do Cuscuz cadastradas na Prefeitura de Olinda, em 2003. A mulher, três filhos menores e o companheiro moram em uma das poucas casas em alvenaria do lugar. Mas a miséria com que convivem tira a graça de quase tudo. As aulas de música da professora Ruby dão um tanto de paz à mãe e diversão aos meninos. O mais velho, de 12 anos, já sabe de cor os versos da primeira canção que conheceu dia desses, "Falai pelas Montanhas". A menina, filha do meio, tem outro talento. Aprende taekwondo, arte marcial que já lhe deu medalha.
A renda da família, conta Andréa, vem da Bolsa Família (R$ 112) e da "ôia" do companheiro, do bico como ajudante de pedreiro. Nada certo. "Faz cinco anos que eu moro aqui, viu? Só que pra mim é muito mais. A gente aqui só tem a Deus. Aqui, a violência, as drogas, essas coisas, começam desde cedo. Tenho medo pelos meus filhos", fala a mãe, na porta da casa de dois cômodos - sendo um deles a cozinha, ondedormem as crianças, dividindo um beliche. O quimono do taekwondo fica dobradinho no guarda-roupas coletivo, no quarto do casal. O banheiro, que não existia quando a família chegou, foi construído aos poucos, com retalhos de cerâmica e uma pia quebrada que achou no lixo.
Andréa aprendeu a escrever o próprio nome há pouco tempo. Nem o da filha - única da casa que aprendeu a ler de verdade - sabe ainda. As crianças estão na escola. "Ganhei a formatura faz um mês. Meu sonho é aprender matemática, porque antes de colocar um produto no cabelo, é bom saber ler, da quantidade, do tempo", fala a mãe, que, para não ver os filhos com fome, cobra dois reais por uma escova no cabelo das mulheres da vizinhança. Tem chapinha e secador, que conseguiu comprar à prestação. "Eu faço o máximo, para não viver na miséria". Nesse dia, o almoço e o jantar foram feijão preto e cuscuz.
O menino e o entulho
Um facão preso na canela, para cortar os entulhos, meião até os joelhos, para não pegar "germes", e boné, apenas porque encontrou no lixo. É assim que trabalha Joaquim (nome fictício), de apenas 15 anos de idade, no Aterro Controlado de Olinda. Luvas não usa porque atrapalha a "bagulhagem", fala o menino, cuja experiência vem dos 10 anos. Por cada quilo de plástico que consegue bagulhar ou catar, ganha 35 centavos. No final de cada semana, diz o menor, chega a tirar R$ 60 - equivalente a 20 quilos ou cerca de 370 garrafas PET. Parte do apurado fica com a mãe, que cria mais três filhos. O padastro e o irmão fazem o mesmo trabalho. A casa da família, aliás, tem vista para o aterro. Dali para os montes de lixo é um pulo. "Venho todo dia. Tem até noite que eu venho, porque tem pouca gente", explica o menino. Nesse dia, havia juntado 40 quilos de plástico, desde às quatro da manhã. Joaquim está fora da escola desde o ano passado. Não sobra tempo nem cabeça para a música da professora Ruby. Vez por outra, vê gente brigando, puxando faca por material. Apenas dois policiais militares, por turno, guardam o lugar. O menino é apenas um dos menores na bagulhagem. Na placa fixada no portão de acesso ao lugar, um contra-senso: "proibida a entrada de crianças e adolescentes".
Foto: Cecília Sá Pereira.
domingo, 21 de setembro de 2008
Без перевода, obrigada
Nem me pergunte o nome deste senhor aí em cima e embaixo, que não sei responder – nem saberei, infelizmente. Conheci – posso assim dizer apesar de ignorar a sua história - em São Petersburgo, cidade da Rússia cheia de armadilhas para os olhos. E de contradições daquelas que sacodem a gente lá para o centro da vida, para dentro das páginas amarelas, cheirando à estante de madeira, desgastadas por traça. Em pé na calçada – sempre um bom lugar para espiar o cotidiano - estava este homem, quando fiz as fotos, em julho deste ano, alto verão. Ficava na Avenida Nevsky, uma versão da 5 Avenida de Nova York. Lojas chiques, caras, de grifes importadas, americanas, italianas
e francesas vendiam as modinhas da estação. Foi, talvez, a única vez na viagem que não precisei do cirílico – aquela mistura de grego com hebraico da escrita russa - para ler as fachadas. GAP, Valentino, Dior... Bom, mas o que queria mesmo era saber o que este homem segurava nas mãos. Será que ele vendia algo também? De frente para ele, toda forasteira, travei. Somente percebi que um dos livros era um romance de espionagem - dava para ver pela capa. Já o outro eu soube a muito custo, depois de obter o livro de segunda mão - mais por instrumento de aproximação com o homem do que pelo conteúdo - e consultar Anna, a recepcionista do hotel onde fiquei. Eu havia trazido A História de São Petersburgo. Claro que valia saber de "Pedro O Grande", da aristocracia, de Lenin, de Trotsky, dos soviets, bolsheviks e comunistas, mas não mais do que da história daquele homem. Não consegui fazê-lo me entender. Naquele dia, tudo que eu pronunciava em russo era Без перевода (fala "spasiba"), ou, obrigada. Mesmo assim e sem saber quanto ele cobrava, se é que cobrava, troquei 30 rublos, a moeda local, pelo livro. Ou, 1,18 dólar. Ou, R$ 2,37, na cotação da data desta postagem. Ele sorriu. Eu saí. Desconcertada. Saí andando, flanando pela avenida, intrigada com aquele riso, segundo e último diálogo entre eu e ele, depois das fotos. Ignorante na cultura daquele homem, só consegui dúvidas. Senti um certo mal resolvido, um incômodo. Ele havia sorrido do pouco que deixei ou porque fui a sua única cliente, por todo o dia? Ou os dois? Continuei andando com uma certa vergonha de olhar para trás. Mais um dia na cidade e descobri que uma garrafa d`água de 300 ml custava 50 rublos, a corrida de ônibus, 20 rublos - transporte público é um ponto fraco da cidade que está entre as dez mais visitadas do mundo -, um sanduíche com refri na McDonald`s, 120 rublos, e um prato de sopa num fast food, 200. O guia da Lonely Planet informava que a renda mensal do são petersburguense era de 15.000 – pouco mais de dois salários mínimos do Brasil (R$ 415). Depois, também fiquei sabendo, por duas garis, que os idosos "sem aposentadoria" da cidade ou trabalham limpando (ruas, parques, lanchonetes) ou vendem livros e objetos pessoais, a exemplo dos ex-combatentes - São Petersburgo já passou por três grandes guerras e duas revoluções -, que se desfazem de comendas, medalhas, farda etc como se fossem matrioskas, as bonequeinhas russas encaixadas umas nas outras, souvenir mais popular do país. "Miséria é miséria em qualquer canto". Só numa manobra do inexorável eu poderia rever aquele senhor "invísivel". Esconderá, para sempre, um milagre - ao menos para mim e este blog. Pode ter sido um professor do conservatório de música erudita. Pode ter sido pai de cinco filhos. Pode ter pago todos os impostos ao governo. Pode ter trabalhado numa repartição pública, num banco norte-americano, vendido seguros de vida, carros, barcos. Contaria, ele mesmo, a história da Rússia? Vida ordinária.
Ps: o livro que eu trouxe tem uma dedicatória. Mas, essa história fica para a próxima postagem.
Custo de vida em São Petersburgo (em rublos)
Garrafa d`água 300 ml – 50.
Vodka razoável – 90.
WC público após a vodka – 15.
Boneca Matrioska, souvenir famoso – 200.
Sanduíche McDonald`s – 120.
Prato de sopa em fast food – 200.
Táxi – 400 (bandeirada mínima; se for clandestino a viagem é negociada).
Minibus – 20 (no máximo 30 pessoas). Renda mensal, média, de um cidadão de São Petersburgo – 15.000 (fonte: Lonely Planet).
quarta-feira, 20 de agosto de 2008
O eremita moderno
Em vez do manto em cambraia cobrindo todo o corpo, a calça jeans, o casaco em nylon com capuz e o tênis. No lugar da barba crescida, escorrida queixo abaixo, os pêlos aparados. Ao invés do cajado e da lanterna nas mãos, o aceno de bom dia, boa tarde e boa noite. Zé Carlos é um eremita. Mas um eremita moderno. Que não usa manto, não tem barba grande, cajado nem lanterna, como o da religião e o da carta do tarô. Que não se isolou da gente. Que não nega a palavra. Ao contrário. Mesmo no silêncio profundo, condição de um eremita, é capaz de falar aos outros pelo olhar. Zé Carlos compra pipoca, biscoito, bombom, cerveja, como qualquer um da gente. Conta de poder e política no Brasil - ao jeito dele, mas conta. Descansa da rotina não num deserto ou esconderijo, mas onde qualquer um pode vê-lo, na esquina da Rua Padre Carapuceiro com a Rua dos Navegantes, em Boa Viagem. Caminha diariamente na Avenida Boa Viagem. Contempla a natureza e a gente, como se ainda quisesse tirar conhecimento delas. É um eremita moderno. Sem opinião ou crença formada. Apenas existe na paz.
O eremita tal qual o da religião e o do tarô escolhe viver isolado, afastado da gente. Faz isso para descobrir conhecimento no que está em volta. Mas Zé Carlos - nome que tem em Boa Viagem - não é assim. Até faz sua viagem pelas ruas da vizinhança sozinho, mas não solitário. Vai diária e pontualmente (perto do meio-dia) ao portão de pedestres que faz fronteira entre o Shopping Center Recife e uma ilha de prédios de negócios. Cumprimenta quem passa por ele. A hora do almoço aumenta o vai-e-vem. E bem-aventurado o que receber um suave "bom dia. Como vai? Estava viajando?". Soa quase como um Sermão (moderno) da Montanha: "bem-aventurados os que promovem a paz, porque são chamados de filhos de Deus". A paz, como já mostraram Jesus Cristo, Buda e outros religiosos, está na síntese. Num simples cumprimento de Zé Carlos.
O eremita Zé Carlos não parece sê-lo por penitência, religiosidade, misantropia (aversão ao ser humano) ou apego à natureza, como se diz no tarô. Em verdade, quem o conhece, nem cobra motivo. Na esquina, no fiteiro, no self-service, no calçadão ou na portaria dos prédio vizinhos à esquina onde dorme, ninguém sabe seu nome completo, idade, ascendência, se teve casa, carro, cachorro, emprego. Ninguém sabe, sequer, o tanto de tempo ele vive na rua. É como se todo mundo já admitisse aquele homem ali, sem passado. Guardião do presente. Profeta - como também ficou conhecido na vizinhança - do futuro.
Zé Carlos compra biscoito recheado para dar às crianças que estão no sinal de trânsito. Arranja pipoca para dar aos pombos. Abre mão da quentinha de comida oferecida pelo vizinho do bairro, quando já foi satisfeito com outra doação. Diz que aquele alimento deve servir a quem precisa mais do que ele. O pouco dinheiro que, enventualmente, aparece no bolso na calça jeans é dividido com outros em situação de rua também. Ele, ele mesmo não pede. Ao contrário, ensina a quem convive com ele a não ter pena nem dó. Existe uma espécie de pacto com a comunidade. Ninguém incomoda ninguém. Silêncio e respeito de ambas as partes. Mas, por que Zé Carlos haveria de se incomodar, se tem elegância até para aceitar um dia inteiro com apenas uma sopa na barriga? No tarô, tirar a carta do eremita significa que algo perdido será recuperado, que uma revelação virá. E o que é dar biscoito recheado às crianças no sinal, se não lhes devolver um pouco de infância?
O casaco em nylon preto cobre Zé Carlos à noite. É o manto de proteção. E só, na esquina do bairro nobre. Ele não tem apegos. A trave da placa de trânsito - de sentido proibido - serve de apoio para a cabeça. Somente um papelão separa o corpo dele da calçada de pedras portuguesas bem cuidadas. Mas ele nunca fez queixa a ninguém. Nunca reclamou. O farol alto do carro não o acorda. Ele nem se mexe com o cachorro que se aproxima curioso. Zé Carlos nunca reclamou. Também nunca viveu diferente. E nunca, no caso dele, não é exagero. Porque a rua estica a vida. Acostuma os olhos. Banaliza as coisas. Deixa a gente ordinária.
Mas Zé Carlos não é gente ordinária. Ele resiste, embora faça, para ele mesmo, as mesmas mínimas coisas, todos os dias. Há nove anos, o Diario o conheceu. Em 17 de outubro de 1999, o jornal publicou a reportagem com as "figuras típicas das ruas da cidade", os "exóticos que compõem a paisagem do Recife". Já naquele dia, mais falante que hoje, ele disse que "enquanto a sabedoria não tomar o lugar da pobreza e da maldade, o mundo não vai ter jeito". E proferiu: "Deus não quer que a gente ande com bíblias debaixo do braço ou viva enfurnado em templos. Ele só quer o amor e a paz". No reencontro, na reportagem de agora, ele é o eremita moderno, que vai ganhar a "chave do mundo". No tarô, não existe uma carta ruim. E quando uma carta sai repetida, não é coincidência. Zé Carlos existirá sempre.
O reencontro
por Jaqueline Maia, fotógrafa
Ao ser publicada pela primeira vez em um jornal, uma imagem deve trazer informações capazes de dar veracidade aos fatos narrados no texto da matéria. Após a publicação, a foto vai para o arquivo e ali pode ficar por vários anos, podendo ser reutilizada ou não. Mas quando essa foto é publicada pela segunda vez, ela adquire outro siginificado: resgatar da memória referências, histórias e histórias que estavam guardadas, além de ressaltar a importância da própria fotografia em questão. Quais fotos já foram vistas duas vezes em um mesmo jornal? Poucas, acredite.
Um personagem que volta às páginas de um jornal, pelas mãos da mesma fotógrafa, após nove anos de arquivo, é um acontecimento raro. Por isso, publicou-se, aqui, uma foto antiga e uma nova do mesmo personagem. Para a maioria dos leitores, Zé Carlos passa a existir agora, no momento em que lê a matéria. Para a fotógrafa, o Profeta, pois foi com esse nome que o conheci lá atrás, é uma história (ou estória?) muito bacana para guardar e contar.
terça-feira, 5 de agosto de 2008
De carona na Kombi

domingo, 27 de julho de 2008
Do aeroporto à Lua três vezes
Férias, João "Doido" nunca tirou. E olhe que são 57 anos de profissão, incluindo os 41 do aeroporto. A única vez que se deu ao luxo de descansar foi quando tinha um Chevrolet Ômega. "Esse carro era o preferido da presidência. Então, quando Fernando Henrique veio inaugurar uma barragem em Serra Talhada, trabalhei na comitiva", lembra o taxista, sobre 1998. Ah, o descanso ficou por conta do hotel e comida de graça, durante sete dias. Antes de táxi, dirigiu caminhão e "Marinete", espécie de Kombi, fazendo frete e transportando gente do interior à capital e vice-versa - não existia rodoviária e a parada era no Parque 13 de Maio, no Centro. "Naquela época, só tinha comércio no Recife. Depois que inventaram a estrada, a coisa se espalhou". Antes de motorista, foi trabalhador de roça, junto com o pai, em Araruana, cidade paraibana onde nasceu e que abandonou, aos 16 anos de idade. "Chegava o final do ano e eu só ganhava dinheiro para comprar uma roupa de mescla azul e uma percata pega bode. Andei dois dias para chegar em Guabiraba. Tava sonhando ser carregador de caixeiro viajante, da estação de trem para o hotel. Aí, uma dona de pousada me chamou para trabalhar como gato de hotel, que hoje é chique, chamado de re-cep-ci-o-nis-ta", soletra.
De "gato de hotel", seu João pulou para motorista. Tinha 19 anos. A primeira "carta para dirigir", não esconde seu João, foi "arranjada" pelo fazendeiro Chicuta Pedrosa, para quem trabalhou de "chofer". "Naquela época ele era coronel, né? Até o meu nome ele assinou, porque eu nunca entrei numa escola", confessa. Assinar o nome, aliás, foi a única coisa que ele aprendeu. Ainda hoje não sabe a diferença da letra A para a B. Mas sabe da vida. E muito. "Não leio as placas, mas conheço tudo desse estado. Basta gravar a estrada, o mato, a rua, o muro, a cara das pessoas. Só errei uma vez, fui bater em Garanhuns em vez de Canhotinho, porque me confiei na leitura do passageiro, que só depois de rodar bem muito me disse que também era analfabeto". Os 11 filhos (sendo oito ainda vivos), ao contrário dele, foram à escola. "Eu não tinha tempo de visitar a família, quanto mais de aprender. E olhe que a minha esposa era professora". As cartas de amor do casal quem escrevia e lia para seu João era um amigo "bombeiro".
Sem distinção - Seu João não deixa um passageiro carregar mala nem peso. Acha que é obrigação do taxista - ou um costume dos tempos de carregador na estação de trem. Faz viagem com muita gente famosa. Elba Ramalho, Genival Lacerda e o jogador de futebol Rivaldo são os que a memória gravou. Mas, para ele, tanto faz se é artista, político, jogador de futebol ou anônimo. "Eu não trato com diferença porque também não quero que façam comigo". Já viu muita coisa dentro do carro. Tem um repertório sem fim de histórias para contar. "Já teve muita briga, muito rala e rola e mulher deixando o carro no estacionamento do aeroporto para encontrar o outro". Mas, para ele, tanto faz falar ou não. Seu João está ali para trabalhar. A vida toda. "Sustentei os meus filhos e agora ajudo a criar os meus 30 netos e 30 bisnetos com o táxi". Ele mora com um dos dois filhos que também são taxistas, a nora e duas crianças, em Prazeres. O apelido "Doido" foi dado pelos colegas porque topa todas. Um dia desses, fez uma corrida até Afogados da Ingazeira, a 386 quilômetros do Recife, para ganhar R$ 600. "Relampeava mais do que tudo, mas eu precisava".
Se a primeira "carta de dirigir" foi arranjada pelo coronel, a última custou um pouquinho ao seu João. "Da última vez que fui renovar, em 2006, o médico ficou achando ruim. Me disse para não dirigir mais. Aí, eu falei: doutor, eu tenho a carta há 57 anos. Olhe o meu prontuário. Veja se eu já provoquei algum acidente. Ou o senhor bota ela (a secretária) para encher a ficha (do Detran) ou eu volto para a enxada". Seu João nunca pensou em ser outra coisa na vida. Quem viaja no táxi dele, entende direitinho por quê.
(texto publicado no Diario de Pernambuco, em 25 de julho de 2008).
sábado, 12 de julho de 2008
Um certo Tchaikovsky

A ópera do nome
O pai de Tchaikovsky, Ricardo, precisou procurar a Justiça para fazer a certidão de nascimento do filho com os nove nomes e somente um sobrenome. "O primeiro cartório não quis fazer o registro de jeito nenhum. O segundo me pediu para procurar um juiz e trazer uma autorização por escrito. Foi o que eu fiz. O juiz achou esquisito um nome tão grande, todo estrangeiro, me falou da dificuldade de tirar outros documentos, mas eu não desisti. Eu tinha certeza que estava fazendo a coisa certa", recorda o pai. Ricardo tinha certeza, apesar do detalhe: quando ele procurou a Justiça, apresentou 19, em vez de nove nomes próprios. O juiz fez Ricardo abrir mão da metade.
A carteira de identidade e o CPF contam outra parte da ópera que é a vida desse menino, desde o seu começo. "A gente passou uma manhã e uma tarde todinha no Instituto Tavares Buril porque o nome completo não cabia na cédula de identidade. Foi preciso esperar o programador de informática dinumuir o tamanho das letras no computador, para entrar o nome todo. Por lei, nenhum nome pode ser abreviado no RG ou CPF. Não sei como a Receita Federal deixou passar no CPF três nomes (Pryce, Zolman e Hunter) somente com as iniciais", estranha Ricardo. Tchaikovsky aprendeu a ler e a escrever em casa, com a mãe, Jane. Depois do alfabeto, ela ensinou o menino a fazer o próprio nome, completo. "Nesse tempo a gente teve que tirar ele da escola porque, de tanto ser repreendido por uma professora, ele ficou traumatizado. Não queria mais ir para escola alguma. Então, se eu estava desempregada, podia ficar com ele, educando e trabalhando a cabecinha dele. E eu fui aos poucos tirando o medo dele", diz Jane. Tchaikovsky não levou mais do que dois meses para fazer o próprio nome, letra por letra. "Ele nunca estranhou o tamanho do nome. Sempre achou normal. Porque tudo mais na vida dele sempre foi normal. Ele tem uma família que se esforça e tem amor".
O menino continou levando na boa. No colégio onde faz o terceiro ano do ensino médio, ele é Tchaikovsky ou Lins, na lista de chamada. No trabalho como estagiário da Celpe -, mesmo com muita timidez - tal como o famoso compositor russo de música clássica Tchaikovsky - ainda explica a origem do nome aos colegas. "Eu preciso ir a muitos andares do prédio. Quando eu entro numa sala e me apresento, tenho que repetir. Aí, junta todo mundo do setor para ouvir eu explicar os nomes. Muita gente acha interessante", conta Tchaikovsky, chamado em casa e pelos colegas de "Tchai".
E o que "Tchai" explica é o seguinte: "Eu não era para ter nascido. Então, como filho único que eu seria, meus pais quiseram me dar um nome especial. E a música clássica é uma coisa especial na nossa família. Minha mãe e meu pai se apaixonaram através da música clássica. Então, eles escolheram o meu nome nos discos de vinil que tinham em casa. Tchaikovsky foi de Pyotr Ilyich Tchaikovsky, um dos mais importantes compositores russos. Johannsen veio de Arne Johannsen, um regente alemão. O Pryce foi de outro regente, Yuri Pryce. Ludwin deveria ser do mestre alemãoLudwig van Beethoven, mas saiu errado no registro". Somente Zolman e Lins não têm origem na música. O primeiro, segundo "Tchai", é bíblico. "Do hebráico significa homem gerreiro", ensina. Lins é o sobrenome da família. "Se eu tivesse nascido menina, seria difícil. Porque existem poucas musicistas clássicas", acrescenta.
Do vinil ao celular
Os discos de vinil que inspiraram o nome do menino estão guardados como relíquias na estante da sala e sobre guarda-roupas. Um dos mais valiosos é do O Lago dos Cisnes, primeiro balé com orquestra do mundo, criado justamente pelo russo Tchaikovsky e encenado nos quatro cantos do planeta, desde 1877 - quando estreou no Teatro de Bolshoi, em Moscou, na Rússia. Mas a radiola toca também Antonio Lucio Vivaldi, Johann Sebastian Bach e Wolfgang Amadeus Mozart. A família justifica o gosto, em coro: "Traz calma, serenidade. Faz a gente viajar". Samba, funk, brega, nada mais entra em casa. As óperas e outras obras que o pai baixa no computador ficam salvas em CDs e no celular de Tchaikovsky. O aparelho é também tocador de música. Ele dorme e acorda ouvindo aquilo que já conheceu no vinil. Dorme e acorda sonhando em ser um daqueles compositores, maestros ou regentes que estão nas capas dos discos. O parente musicista mais próximo da família Lins é um bisavô do menino, que foi maestro de bandas e fanfarras no município de Belo Jardim, no Agreste de Pernambuco, a 187 quilômetros do Recife.
Solista do próprio destino
Do computador instalado no corredor da casa, os pais de Tchaikovsky tiram as partituras para ensaiar. Ricardo e Jane são regentes de três corais de igreja. O menino vai no mesmo caminho. Mas sozinho. O solo de Tchaikovsky, da Mangueira, está sendo preparado por ele mesmo. "Nunca obrigamos ele a gostar de nada. Tanto, que só agora ele está se dedicando por vontade própria", diz a mãe. Enquanto não presta vestibular para física ou química no final deste ano - não estranhe a opção pelas ciências exatas porque música também é matemática, é cálculo - vai aprendendo a solfejar, ou, a distribuir as vozes, dar os tons, valores e a afinação de cada uma. Para entender melhor as partituras, escritas principalmente em alemão, ele descobre o idioma. Tirou da internet as apostilas e o áudio de um curso gratuito. "A Alemanha é um berço da música clássica. Eu sempre me transporto para lá quando estou deitado na cama, ouvindo no celular". Um dos desejos de Tchaikovsky é conseguir uma bolsa de estudo aqui mesmo, no Recife, para aprimorar o conhecimento em alemão.
Neste mês, ele vai se inscrever no Conservatório Pernambucano de Música. O pai ensina o básico que ele precisa saber para passar pelos testes rigorosos. O curso "intensivo" se dá no programa de computador que imita um órgão - porque o de verdade está queimado, encostado no quarto do menino. "O piano é o instrumento mais completo. E eu desejo estudar muito piano", revela o aprendiz. Tchaikovsky também já está escolhendo o repertório que vai apresentar no concurso de música promovido pela empresa onde ele trabalha, este ano.
O primeiro ato
Mas a história de Tchaikovsky Johannsen Adler Pryce Jackman Faier Ludwin Zolman Hunter Lins, que um dia foi resumida a uma piada na internet, nem era para ter existido. Nem era para estar aqui, nessa página de jornal. A mãe, Jane Silva, e o pai, Ricardo Lins, tinham problemas de saúde e financeiros que impediam a gravidez e a criação de um filho. Mas ela, principalmente, não abria mão da maternidade. E, quase como num milagre, Jane conta, engravidou, depois de dois anos de casada. O sexo do bebê só foi descoberto pelo casal na hora parto. Jane e Ricardo queriam e pressentiam que seria menino mesmo. E desejavam tanto, que nem em nome de menina os dois pensaram. Os nove nomes próprios e somente um sobrenome foram o jeito de marcar aquele acontecimento de 11 de janeiro de 1991. O casal descobriu depois que não podia ter mais filhos.
Tchaicovsky Lins, que nem era para ter nascido, hoje ajuda a criar a família, digamos assim. Trabalha como auxiliar administrativo do departamento jurídico da Celpe, desde março passado. Pelas quatro horas de expediente, de segunda a sexta-feira, recebe a remuneração de R$ 415 e passagens de ônibus. Também terá direito ao 13º salário proporcional ao tempo de trabalho. O início dessa experiência, sorte de pouco jovens brasileiros, está escrito justamente na internet. No site de pesquisa Google, o nome completo do menino aparece na lista de alunos dos cursos de capacitação do programa federal Primeiro Emprego, criado em 2002 para colocar jovens carentes no mercado de trabalho. "Fiquei sabendo desse programa pelo jornal. Levei logo o currículo do meu filho à Agência do Trabalho, na Rua da Aurora, no centro da cidade. Depois de uns oito meses recebi um telefonema do Instituto Empreender, dizendo que Tchaikovsky tinha sido escolhido para participar de um curso de auxiliar administrativo com o Projeto Enter Jovem. Esse instituto é que banca as aulas, junto com o governo do estado. Mas aí, começou outro drama. Como ele ia estudar no colégio e no programa, sea gente não tinha carro nem dinheiro para as passagens?", lembra Jane.
De bicicleta, claro, único meio de transporte da família. Foi o pai quem levou Tchaikovsky na garupa para o Colégio Ferroviário, no bairro de Afogados, onde fez o curso de capacitação, no Bongi, e daí para casa, na Mangueira. A "magrela" foi um presente que o casal ganhou de uma congregação por ajudar a criar e a reger o coral de que faz parte - a família é evangélica. O esforço nos três turnos do dia valeu - e vale - tanto, que Tchaikovsky foi eleito o representante da turma e entrou no trabalho antes mesmo do curso acabar. O menino continua estudando, fazendo uma espealização de auxiliar administrativo no Senac. "A gente tem dois medos. Um é que ele vá para o Exército. O outro, que ele não seja efetivado na Celpe, depois que terminar o estágio, em dezembro que vem", confessa a mãe.Ricardo é técnico em contabilidade e Jane, auxiliar de enfermagem. Ao contrário do filho, tiveram que largar os estudos no ensino médio para se sustentar. Hoje, nem estudos nem trabalho. Há seis anos, os dois estão desempregados. São remunerados quando os "irmãos da igreja podem contribuir" - daí porque bicicleta fica guardada na sala de estar da casa de dois cômodos.
A música de "Tchai"
Curiosamente, o primeiro contato do famoso compositor Tchaikovsky com a música foi aos cinco anos de idade. A mãe dele usou um órgão mecânico velho que havia em casa para ensinar árias da moda. A vontade da família era que o menino russo fosse advogado. Perto dos 20 anos, porém, ele negou qualquer vocação para o direito e foi estudar música no Conservatório de São Petersburgo, na Rússia. Qualquer pessoa nessa idade é considerada, pelos especialistas, velha demais para estudar música. E ele não fugiu à regra. Aos 21 anos, apesar de conhecer e gostar de Mozart, o jovem não ouvia nem tinha a menor idéia de quantas sinfonias Beethoven havia escrito. Mas ele sabia, assim como Tchaikovsky da Mangueira, o que a música poderia lhe dar. E sabia tanto, que antes de morrer, aos 53 anos, já havia criado balés, sinfonias, óperas e concertos executados até hoje, no mundo inteiro. Costumava dizer que "música é vida interior. E quem tem vida interior não está sozinho". E isso, certamente, Tchaikovsky Johannsen Adler Pryce Jackman Faier Ludwin Zolman Hunter Lins, aos 17 anos, já aprendeu, já pode até ensinar.
domingo, 29 de junho de 2008
Av. Agamenon Magalhães, sem número. Sem nada
Erinaldo, Lourival e Gilberto moram juntos. O endereço é um dos mais freqüentados do Recife: Avenida Agamenon Magalhães, sem número, Derby. Todos os dias levantam com o sol e saem para ganhar a vida, com um cafezinho no estômago. São donos do próprio negócio e o ponto comercial pode ser em qualquer esquina da cidade. Erinaldo é poeta cuja obra cabe numa sacola de ráfia desgastada. "Arte incompreendida" que carrega debaixo do braço e alimenta seu pensamento. As latinhas que seu Sardinha, apelido de Lourival, transforma são brinquedo para a criança de sítio que um dia ele foi. "Deixei a casa dos meus pais quando tinha 10 anos", lembra o artesão. Gilberto, o mais velho deles, sobrevive com a "missão que Deus deixou": cuidar da namorada que, segundo ele, é portadora do HIV.
Também todas as noites os três homens voltam juntos para a casa, sempre cheia de hóspedes e visitantes, 24 horas. Dormir é a única coisa que resta para eles. É o possível num lugar que não tem teto nem paredes. O chão se inclina em rampa. Cozinha, para que, se comida só de vez em quando? Erinaldo, Lourival e Gilberto dormem e acordam no Hospital da Restauração, porque têm medo das ruas. A violência já lhes mostrou a cara nas marquises, calçadas e viadutos.
(continua na postagem abaixo)
Av. Agamenon Magalhães, sem número. Sem nada (primeira parte)

Todo mundo pára para ver as latinhas de seu Sardinha, na rampa do HR. Comprar são outros quinhentos. Cada uma custa um real. "Tem dia que não vendo nada. Mas também tem dia que eu dou tudinho. Faço isso para ocupar minha cabeça. Se eu puder ganhar alguma coisa, é para comprar comida", fala seu Sardinha, enquanto afasta as bitucas de cigarro dos outros com a ponta da faca que corta as latinhas. O cheiro provoca o ex-fumante. Outro vício, diz ele, não teve.
Semana que vem, Lourival vai tentar um emprego numa movelaria do centro da cidade. Aguarda apenas a boa vontade do contador da antiga firma para lhe entregar a carta de referência. "As panelinhas aprendi com um colega de João Pessoa. É um jeito também de tirar o lixo da rua, né? A marcenaria, irmã, aprendi sozinho. E eu ensinei também para um dos meus filhos", orgulha-se. Se tudo der certo na nova firma, a primeira coisa que vai fazer com o salário é achar um cantinho. "Com um emprego, eu vou morar aqui? Não volto para junto dos meus filhos porque a mulher não quer".
A marcenaria deu a Lourival um jeito de moldar a própria vida. "Tenho medo da violência na rua. Mas eu não vejo outro jeito se não for rezar para aquele que tem raiva de você. A coisa mais importante que eu posso fazer é perdoar o próximo". Lourival saiu de Garanhus aos 10 anos de idade. Morava em um sítio, com os pais e sete irmãos. "Sabe como é fazendeiro, né, irmã? Muito bruto". Seu Sardinha tem uma reza diária: "primeiramente, amo a Deus, depois a mim, depois a minha mãe".
Av. Agamenon Magalhães, sem número. Sem nada (segunda parte)

Gilberto não gosta de dar ouvidos aos companheiros de rua e do hospital. "Todo mundo diz que é para eu largar ela (Fátima), mas para mim seria uma coisa muito dura. Até uma freira já me disse para eu me separar dela. Mas eu sinto vontade de cuidar dela para a vida toda". E o que é isso, seu Gilberto, se não amor? Ele mora no HR e Fátima, de favor, com uma ex-empregada dela. O namoro na pracinha dura menos do que uma hora e Gilberto coloca Fátima de volta no ônibus para casa. Viagem mais longa os dois planejam para Belém, no Pará, onde ela tem família. "Vou com ela porque essa pode ser a última missão que Deus colocou para mim, né?".
Pai e mãe Gilberto não conheceu. Essa é uma das poucas certezas que tem. Foi adotado por uma família que diz não existir mais. Se não fosse Fátima, seria ainda mais só, porque quer solidão maior do que nem lembrar da infância? A mochila a tiracolo tem algumas mudas de roupa. Experimentou as ofertas fáceis da rua, como álcool e drogas. O último emprego foi num sítio. Não aprendeu uma profissão, como diz. O trabalho era puxar carroça com papelão e resto de lixo dos outros. Além da viagem com Fátima, Gilberto quer "negociar pipoca e bala, feito o pessoal daí da frente faz. Não culpo ninguém do que eu tenho. Sofro muito, mas eu quero me levantar".
Av. Agamenon Magalhães, sem número. Sem nada (parte final)

quarta-feira, 25 de junho de 2008
Patrícia, a companheira de trabalho

Amisterdam, o cidadão

domingo, 22 de junho de 2008
Quer comprar? Expedito do Beco tem para vender.
Prosa é o que Expedito do Beco dá de graça. Basta chegar na bodega e puxar assunto. É provável que o visitante tente matar a curiosidade de primeira: quantos artigos tem na bodega? "Quantos artigos? Ah, de número eu não sei. Mas, se for perguntando coisa por coisa, eu digo se tem ou não", confessa o comerciante de 79 anos, batizado Expedito Pereira do Nascimento, natural de Triunfo mesmo. A resposta de Expedito logo faz sentido. Quem bota os pés dentro do casarão de número 43 na esquina da Avenida José Bezerra, vê que nem o dono do Pão de Açúcar e do Extra, Abílio Diniz, daria conta do estoque.
"O mais esquisito que eu tenho aqui é um capacete". Mas esquisito mesmo é Expedito dizer isso, numa cidade onde muita gente usa motocicleta e numa bodega que tem para vender casco de bebida que não existe mais. Bom, o equipamento de proteção, usado, custa R$ 10. Os chocalhos também estão a precinhos módicos: R$ 3 e R$ 6. Pirulito é o que há de mais em conta: R$ 0,15. "Se o camarada quiser trocar, eu troco. Desde que a coisa que ele trouxe vá ter serventia para alguém. Troço véio, feito chaleira, é o que mais sai. Não posso deixar é o dinheiro escapar", conta Expedito do Beco. O sobrenome e apelido homenageiam o aperto do comércio, que existe há 25 anos no mesmo ponto.
Deus abençoe - A bodega é movimentada. Vai cliente e vai gente somente prosear com Expedito ou a filha, Roldânia, que ajuda no balcão. "A bagunça começa na minha casa. Meus filhos foram batizados de nomes estranhos. Tem Rílquia, Rislaine, Ríntia e Rosivan, que é uma mulher, mesmo sendo masculino. Só escapou Romildo", diverte-se o comerciante, enquanto Roldânia despacha uma freguesa que precisa de um pedaço de mangueira. A esposa de Expedito, a propósito, é cúmplice nessa história. Dona Maria é gentil já no sobrenome.
Em fim de tarde, quando o vaivém de mototáxi se acalma, a grade de garrafa serve de banquinho na roda de prosa ou na contemplação da vida local. Triunfo passa bem na porta da bodega: estudantes a caminho de casa, donas-de-casa em direção à padaria - que se conta numa mão quantas existem -, trabalhadores da agroindústria arrastando o passo, o sossego de uma cidade pequena, que tem cerca de 1% da população do Recife (1,5 milhão). Por isso e pela prosa Expedito do Beco não cobra. "Deus abençoe essa bagunça". É o que diz a plaquinha em madeira pendurada no balcão.
Serviço
Bodega de Expedito do Beco.
Avenida José Bezerra, 43, centro.
Telefone: (87) 3846-1271.
Triunfo, Sertão do Pajeú, Pernambuco, a 451Km do Recife.
Acessos: BR-365 e BR-232 (via Serra talhada).
População: 16 mil habitantes, aproximadamente.
Área: 192 quilômetros quadrados.